junho 17, 2003

DEUS E A EUROPA, OUTRA VEZ. Eu acho isso inquietante porque Deus é um problema inquietante. Incomoda-me esse excesso de indignação por causa da «ausência de Deus»; os arcebispos e os acólitos de igreja matriz não são de confiança — esse catolicismo fácil, cheio de tradição e de peregrinações não me comove um instante (mas ninguém tem de ser como eu). O problema é confundir-se Deus com a «tradição de Deus» na Europa. Essa tradição não foi boa, nunca foi boa e lembra as investidas do padre Carreira das Neves quase pré-conciliar, bradando contra os judeus e os deicidas.
Quando era professor na Universidade de Évora recusei-me, a certa altura, a dar aulas no Palácio da Inquisição. A imagem incomodava-me: os sanbentinhos, as gravuras de condenados, as traições, a imolação do herege pelo fogo cristão, as festas reais para queimar os desgraçados que nunca tinham sido judeus nem cristãos-novos, a razia provocada pela Inquisição de Évora pelo sul do país – assassinando crianças, velhos, descrentes, gente incómoda –, a fogueira que queimou os ossos de Garcia d’Orta depois de morto, desenterrado para que o «mal» não subsistisse. Tudo isso me indispõe quando oiço Paulo Portas e os arcebispos. E incomoda-me pensar na família de Baruch Espinosa perseguido pela tradição cristã, incomoda-me pensar na fuga de Grazia de Nasi, incomoda-me pensar no rosto dos frades dominicanos e franciscanos que incitavam a populaça a perseguir judeus e marranos, a festejar a morte de Isaac ben Abraham ibn Zachin ou do médico Giuda Abravanel, que em Lisboa se suicidou com os seus filhos, ou a do rabino-mor de Portugal, Simon Maimi (ou dos seus colaboradores mais directos, poupados à tortura e à fogueira, mas emparedados vivos na prisão). Não, não sou sensível à tradição cristã.

Há um conjunto de valores, eu entendo. E de protecções (contra a Turquia, contra os fanáticos da mesquita de Finsbury Park). Mas Deus é outra história. O Deus desta Europa desapareceu há muito.


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