setembro 07, 2003

O REGRESSO ÀS AULAS. O mundo não está perdido, mas anda idiota. Este ano, depois de ler dois dossiers que a imprensa dedicou ao «regresso às aulas» e aos traumas psicológicos que as crianças portuguesas se preparam para sofrer, pensei que ou o país tinha ensandecido ou que o Verão estava a ser longo demais. Não era: o ensandecimento é geral e o Verão só foi um pouco mais desastroso do que o habitual (o generoso Carlos do Contra-a-Corrente já falou do assunto com seriedade). Muitas vezes tenho medo de estar a ser frio em relação ao assunto — não se trata de crueldade, apenas de frieza. Tanto a imprensa como a televisão falam desse novo fenómeno que é o stress pré-escolar. Eu sofri bastante com isso: preferia jogar à bola ou passar as tardes no rio. Não era possível, explicou-me o meu avô, que era um personagem sensato. Não era. Setembro era um mês assim-assim. Outubro era desesperante, mas o stress passava duas horas depois da primeira aula. Hoje, a situação parece-me diferente e uma vasto número de confrarias profissionais, desde psicólogos a gerentes de hipermercado, de educadores a sociólogos e jornalistas estagiárias, estão convocados para discutir, com pinceladas de drama, o «regresso às aulas». A culpa é do dr. Spock. Eu li o dr. Spock, e os pais compreendem-me: é um livro útil, como o dicionário de Latim ou o elucidário da Oxford. Serve para sabermos mais sobre as gripes, as otites, as febres, os primeiros horários alimentares dos nascituros e outras matérias metafísicas — e está organizado em parágrafos. Tudo pára aí. O dr. Spock cumpriu a sua função. A seguir, no entanto, uma fantástica horda de opinadores acha que há uma grave situação de stress nas nossas crianças, motivada pelo «regresso às aulas». Este tom de proteccionismo excessivo e de dramatização de todas as metas e rituais de iniciação dá vontade de sorrir, transformando a ansiedade pelo regresso à escola em drama e assunto para trauma. O objectivo é transformar os pais actuais em «agentes da culpa» e em «fabricantes de crianças traumatizadas» por coisas tão simples como voltar à escola ao fim de três meses de excelente e feliz malandragem. Para esta gente, a natureza está mal feita: devia ser sempre Verão e os pais deviam frequentar cursos de formação permanente e assistida. Há umas almas generosas, psicólogos e sociólogos sensatos, que ou se escusam a comentar o tema ou, comentando-o, tentam chamar os cidadãos à razão. Em vão: basta folhear as revistas da especialidade para perceber que — com esta gente — os pais vivem no fio da navalha, porque tudo pode traumatizar as crianças, desde uma derrota do seu clube até uma ironiazinha dos amigos, de uma ordem para desligar a televisão até à obrigação de fazer refeições a horas certas. Uma vez, numa «reunião de pais» com os professores da escola, uma mãe cultíssima, que tinha lido Marcuse e um resumo do dr. Freud, sugeriu que o facto de a bata do seu filho estar sempre suja de volta para casa queria dizer — quem sabe — que o seu filho estava a viver um trauma que o levaria a sujar a bata de propósito. Outra, ao fundo da sala, achou que a própria utilização da bata poderia ser investida de uma função traumatizante. Compreendi a professora, sitiada por tanto manual de piscopedagogia. E é assim. Tudo se explica.