setembro 09, 2003

RELIGIÃO E DIREITA. 2 Há aí algumas questões importantes que poderiam ser — com vantagem — respondidas por sociólogos e historiadores. A verdade é que não há em Portugal, actualmente, autores que se dediquem a escrever sobre religião, o que facilmente explicável por vários factores, sendo que um deles é a falta de prática religiosa e de interesse por assuntos religiosos. Argumentar-me-ão que o assunto religião não mobiliza ninguém senão por instantes. Por outro lado, sendo certo que a maioria do bloggers não é religiosa, há excepções notáveis — uma das quais é justamente o Voz do Deserto. O carácter fragmentário dos seus textos é importante neste meio: o seu conhecimento dos textos é notável, ao contrário do que acontece com a generalidade das pessoas. Outro dos blogs onde se nota essa presença do religioso é o da Ana Albergaria, o Crónicas Matinais, com um tom muito sereno, intimista e pessoal. São os dois blogs onde o tema «Deus» é mais pressentido. Só posso falar do assunto naquilo em que ele me toca, e, mesmo assim, isso daria para vários dias de comentários. Não creio que seja importante falar sobre a natureza do sentimento religioso. No meu caso, trata-se de uma opção pessoal, vivida com uma intensidade de que não sei falar e que não se pode explicar como um raciocínio (tanto mais que, como se sabe, o raciocínio coloca quase sempre Deus entre parêntesis) — e que não assumirá, nunca, um tom impositivo. Quem questionar o meu «lugar religioso», como se o conhecesse, terá de dar a conhecer igualmente o seu lugar, ou o seu não-lugar. Interrogar o sentimento dos outros do ponto de vista de um não-sentimento é uma injustiça (geralmente manifestada pela ironia cega, pelo sarcasmo). Fora disso, não há discussão. Essa é a raiz da própria tolerância, que defendo em absoluto. Mas, para haver tolerância, deve existir um ponto de encontro nesse «dicionário das religiões». Tanto o incréu como o crente podem fazer todas as perguntas (e devem fazê-las), mas é necessário que saibam do que estão a falar.
Não se pode falar da «ortodoxia» sem compreender os limites e a natureza da própria «ortodoxia». Ou seja, para se ser «reformista», «conservador» ou «liberal» («reconstrucionista») — expressões que só fazem sentido, por exemplo, no interior do judaísmo — é preciso ler, primeiro, a «ortodoxia». Só depois se lhe podem fazer as perguntas que quisermos (sobre os ritos, os dogmas, as liturgias, os textos fundadores). Trata-se de uma disciplina essencial. Depois disso podemos fazer humor, inclusive. Sobretudo. Uma religião sem riso, sem humor e sem alegria está sempre a pisar os caminhos do terror.
O tema do «Deus dos nãos» e do «Deus dos sins», trazido há pouco tempo pelo Joel Neto, por exemplo, é um dos assuntos a discutir.
Mas há uma coisa que, à partida, acho discutível: a ligação entre religião e política. A expressão «democracia cristã» causa-me calafrios. «Católicos de direita» e «católicos de esquerda» também me parecem expressões fatais. A ligação «à direita» de tudo o que é «religioso» parece-me um sinal dos tempos, mas sinal da ignorância profunda em relação à história das religiões e do sentimento religioso.
Foi bom o Nuno P. ter perguntado. Mas parece-me que este é um tema para abrir para outros caminhos.