julho 03, 2003

LER NO MEIO DO RUÍDO. Encontro no Crónicas Matinais um post sobre o ruído — não é bem: é um texto (concordo com o Terras do Nunca, que prefere «texto» a «post») acerca da leitura e de como se assiste à «queda do prestígio da leitura». Depois da propagação generalizada da ideia de que bom era dessacralizar a leitura — ou seja, aproximá-la do devaneio, dos lugares profanos, das circunstâncias vulgares — é curioso como a Crónicas Matinais cita George Steiner: «Steiner recorda como ele se vestia para a ocasião mágica da leitura, como se preparava com esmero para se encontrar com os “grandes”. Como imperava o silêncio, a quietude, a ausência de “trivialidades estridentes”.» Errata (publicado em Portugal pela Relógio d’Água) é, por isso, um livro invulgar: nele, Steiner recorda o modo como aprendeu a ler: como um exercício, uma preparação para o comentário no meio dos sons, das línguas originais (o grego, o latim, o hebraico), das gramáticas, do verso e da sua medida — exactamente da mesma forma que a música não tinha a ver com o ruído de fundo que se sobrepunha de vez em quando. Ler era uma preparação para o comentário, mas impõe também um acentuado grau de disponibilidade. É a isso que Steiner (e a Crónicas Matinais que, a seguir, diz que isso não significa «elitismo») chama «vestir-se para a ocasião mágica»: vestir-se não só preparação para a leitura, mas para um tempo disponível, para um «encontro com os grandes».
[O medo do «elitismo» é um trauma aceitável nas sociedades democráticas – mas se há universo em que o medo ou a invocação do «elitismo» não aquece nem arrefece é no da leitura.]
Ora, quando Steiner fala desse tempo de leitura (as horas passadas com o pai, os exercícios de tradução, o treino para o comentário — esse dever judaico —, a comparação de textos e a passagem de uns para os outros — como no Talmud —, a interrogação permanente até esgotar ou cansar o próprio texto — como no Midrash), não fala da leitura corrente, mas de um estádio superior e, certamente, elitista. Não admira, por isso, que e a Crónicas Matinais cite Harold Bloom logo depois. Podemos ter em relação a Bloom (sobretudo ao Bloom de Genius, por exemplo, como faz o Portugal dos Pequeninos) uma certa desconfiança, mas é agradável ver como ele é desprezado pelos «populistas da leitura», aqueles que falam sempre por intermédio de outros, os «modernos» que dispensam os clássicos e a admiração pelo grande leitor — por esse clandestino que se esconde na sua biblioteca e se recusa a admitir que tudo se equivale. Apreender essa diferença é um trabalho contagiado pelo deslumbramento, sim — mas também por uma imensa seriedade, outro dos valores que caiu em desuso mas que se deve guardar para proveito próprio e, muitas vezes, íntimo.
Quando Pacheco Pereira falava das vantagens de ler Tucídides (e se perguntava se os senhores deputados o tinham lido), era também disso que falava: da leitura como preparação.
Diz ainda a Crónicas Matinais: «Por cada citação que leio de Horácio, Virgílio, Dante, Milton, Shakespeare ou Camões eu tremo. Tremo porque temo que a citação tenha sido fruto de uma pesquisa “googleana”, enciclopédica. E isso faz de mim, actualmente, uma fundamentalista.» Esse é o risco admirável que temos de correr.