FUTEBOL. O futebol já deixou de ser assunto para as segundas-feiras, sobretudo quando se joga mal. Na verdade, este futebol da I Liga é assustador e mau. Há poucos jogadores de que eu aprecie realmente o futebol — talvez Deco, talvez aquele miúdo do Sporting, Lourenço, talvez este e aquele; mas poucos. Falta-lhes carácter. Eu gostava de Raí como gostava de Sócrates, como gostava de Zico, como gostava de Cruyff ou Van Basten — como teria gostado de Didi e de Domingos da Guia —, como gostava do antigo Ronaldo. Um luxo. Mas Raí era um caso: odiado pelas multidões e por Zagallo (que preferia o Animal, ao jogo limpo de Raí — recordam-se da história do Brasil-Argentina no Maracanã?), o paulista era um modelo de elegância no seu lugar, um modelo de jogador: olhava em frente porque «em frente» era todo o relvado. Tinha carácter e inteligência, gostava de jogar. O adeus de Raí, há três anos, foi o adeus desse modelo de carácter. Só não foi uma perda porque o vi jogar algumas vezes, e gostei.
Quando penso em futebol, penso no Brasil (e na pena que tenho de o Vasco já não me emocionar como antes). Há uns anos, em S. Paulo, durante uma reunião internacional que juntou meia centena de escritores e editores sobretudo da América Latina, falou-se muito de futebol. A zona do «centro velho» de S. Paulo favorece o tema e, na altura, a final da Copa local mobilizava uns quantos. Christopher Domínguez Michael, editor da Vuelta, a revista mexicana fundada por Octávio Paz, foi quem mais me surpreendeu. À partida, anunciou que gostava de futebol, que seguia as aventuras do futebol de toda a parte e que o incomodavam os intelectuais que, sem terem ido a um estádio, se declaravam inimigos do «maior espectáculo do mundo» ou, pior ainda, se diziam indiferentes. Eu tinha acabado de ler o seu La Utopía de la Hospitalidad, um livro de ensaios — e não esperava essa declaração de princípios. Não havia no livro nenhum sinal. Nada a fazia prever. Nem na filiação em Octavio Paz.
Nada faz prever quando alguém se diz realmente amante do futebol, muito menos Christopher, que passava todos os intervalos do congresso à procura de alfarrabistas ou em delírio recitativo com Hugo Gola, o poeta a quem — com toda a ternura — chamávamos «brujo», um argentino exilado em MéxicoDF desde as primeiras matanças dos generais. À noite, alinhava — à mesa do bar, no Largo do Arouche — na discussão sobre quem iria ganhar o Mundial: «O que mais detesto é que misturem literatura e futebol. São coisas diferentes.» Nada mais certo (isso e o riso — ou a pena — que dá ler poemas do Manuel Alegre sobre o Figo). O futebol pode bem ser uma metáfora da vida, de toda ela, de todos os gestos, de todos os heroísmos ou desalentos — mas o futebol é futebol, a vida anda por ali, mas é coisa diferente. Só uma metáfora, também. Pode ser tudo, o futebol, e por isso é que gostamos dele — agora, que lembro esse campeonato do mundo, o de França, lembro-me do passe de Hierro para Raul fuzilar a baliza de Rufai, dos golos de Salas, de Oliseh ou de Njamka, até do falhanço de «Zubi» na mais infeliz tarde dos espanhóis (que levou Kiko ao maior dos desalentos no último jogo). E por isso é que gosto mais de ver o jogo dos marroquinos ou dos nigerianos do que os croatas, muito mais dos mexicanos do que dos italianos, e prefiro, incomparavelmente, outros jogos a estes que, na sua generalidade, não adiantam nem atrasam. E prefiro que o António Lobo Antunes diga que se está nas tintas para o futebol, porque o Benfica agora não ganha, do que as lérias dos catedráticos que imaginam tácticas que, no máximo, dão para não perder durante metade do jogo.
Fazemos, muitas vezes, críticas à falta de velocidade, de carácter e de sentido de oportunidade destas equipas portuguesas — nestes primeiros jogos —, até para bem do futebol, onde a fé deve ocupar uma parte substancial da alma dos espectadores, mas na companhia da confiança. Ora, há pouca confiança nestas equipas, dentro e fora dos balneários, dentro e fora dos relvados. A fé é manifestamente insuficiente. De contrário, o futebol passa-nos ao lado, como uma distracção e um desvario. Ou um desvio a meio da floresta, uma demonstração de ócio estival disponível nos sofás a cada jogo do dia aprazado.
Um jogo ganha-se desde o princípio. Há um apelo que vem não sei de onde, uma espécie de sinal que é bem capaz de ser visível desde os primeiros passes. E isso não tem nada a ver com a fase de Guus Hiddink, quando treinava a Holanda; ouvi-lhe a coisa mais espantosa antes de um jogo com o México: «O nosso jogo vai ser simples, disciplinado e táctico. É desta forma que produziremos jogadas de golo.» Os mexicanos não tinham um lema, um projecto ou um sentido para a vida (basta ouvir os mariachis), sabiam jogar, arriscar, perder e morrer, ganhar e renascer. Julgam que isso não tem a ver com o futebol? Lembrem-se: no último minuto daquele Holanda-México, curiosamente, Hernández marcou o golo como um trompetista de mariachis antes de erguer o copo de mezcal e dizer «quiero morir».
Às vezes dá um desgosto enorme ver equipas simpáticas desfazerem-se em fumo quando se trata de jogar, jogar a sério. Na televisão não se percebe bem, nem a generalidade dos especialistas e tecnocratas do futebol é capaz de explicar esse «um não sei quê» que percorre certas equipas Ou é um halo divino ou um sinal de desastre. A velocidade nem é o factor essencial, quando se trata de jogar bem, até porque os passes começam a falhar a partir dos dez metros e começa o diabo a tocar a pantalha do marcador. Nem tem a ver com a preparação física, muitas vezes. Relaciona-se, simplesmente, com a predisposição para ganhar (ontem, por exemplo, o FC Porto teve toda a predisposição para empatar).
Tudo isto é bonito, sem dúvida. Mas o que me anima, a mim que até sou madridista? O facto de o Real ter perdido com o Mallorca na primeira mão da Supertaça espanhola. «O nosso jogo vai ser simples, disciplinado e táctico. É desta forma que produziremos jogadas de golo» — estou mesmo a ver Carlos Queiroz dizer isto.
2 Comments:
ninest123 09.16
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