agosto 06, 2003

PORTUGAL. Os incêndios obrigaram muitos de nós a voltarem-se «para dentro» — a perguntarem-se coisas sobre Portugal, sobre os cuidados com o país, sobre «as árvores da pátria». As florestas, já escrevi aqui, são um assunto incómodo — um país também se avalia pela forma como trata as suas árvores. Portugal sempre as tratou mal, sempre as ignorou e menosprezou. Florestas de pinho e de eucalipto cresceram ao acaso; é um luxo, uma árvore. Mais luxo é cuidar das florestas, deixar essa memória espalhada no mapa. Os portugueses não prezam os seus jardins públicos, não prezam os seus parques — não os frequentam. Podia contar muitas histórias: sobre como não se ia para o pinhal da Gelfa, ali nos arredores de Viana, para se sentar e ver as árvores — mas apenas para o arraial ou para o restaurante; sobre como raramente se passam domingos nos parques; sobre como as matas são territórios para reformados, velhos, crianças acompanhadas de avós ou de pais sem mais opção; sobre como as margens das lagoas, com os seus pinhais abertos, são abandonadas à depredação. E sobre como as «autoridades» não preparam os parques e os jardins para serem utilizados. Quando vivia na Parede, havia um jardim onde os meus filhos gostavam de brincar (e a mais pequena abria muito os olhos para o céu); encontrei lá muitos amigos ao fim da tarde, levando um jornal e a filharada para os baloiços — e que se queixavam do mesmo: ou fechava cedo (às seis, que era hora absurda, no Verão), ou os bancos estavam destruídos, ou não havia água no chafariz. E podia contar histórias de outros lugares onde os domingos ou os sábados eram ocupados em longos passeios nos parques, subindo e descendo os caminhos de terra (como em Bergen, com aquela pequena montanha onde se diz que Grieg se teria inspirado para o Peer Gynt); ou o grande jardim botânico de Bali, onde as famílias vão ao domingo para ver árvores e rezar junto do lago; ou os passeios nos parques míticos do cinema (em Londres, em Nova Iorque).
Há uma dimensão material e económica nas árvores; e há uma grandeza cultural e emocional na relação entre os homens e as árvores. Não me parece infantil que se fale disso. Há coisas que estão mesmo à frente dos olhos e achamos que são apenas infantis. Quando passeio em Trás-os-Montes, com os meus filhos, gosto que eles aprendam os nomes das árvores. Eram as árvores da minha infância: os carvalhos, os castanheiros, os negrilhos, freixos, choupos espalhados ao longo dos rios. De vez em quando, percebo que houve um incêndio e que parte deles desapareceu. E percebo que uma parte do país desaparece, assim.

Um dia, num dos seus textos, Manuel Falcão (no A Esquina do Rio) perguntava-se como era possível estar cheio o parque de estacionamento de um dos shoppings da Margem Sul, em Almada — em pleno sábado à tarde, quando o calor começava a aparecer. A descrição era tão perfeita que não a esqueci mais; havia ali — naquele parque de estacionamento — um halo de miséria, de infelicidade e de resignação dramáticos. O país urbano apodreceu no meio de subúrbios mal desenhados e de casas mal preparadas para viver. Desconhece a alegria dos jardins, a serenidade dos parques, a leitura debaixo de uma árvore, pensa que ir ao cinema ou às compras no shopping é incompatível com o piquenique de Primavera.

E, então, recordo Mação, a estrada para Ponte de Sor vindo de Castelo Branco, as velhas árvores de Carvalhelhos, a estrada de Boticas para Alturas do Barroso, as árvores do Gerês, os pinhais de Proença-a-Nova, os outeiros que rodeiam Vinhais, do Zoio a Ousilhão. Portugal começa a ficar despido dessas árvores. Não é um drama. O Guerra e Pas escrevia sobre isso quando falava da «necessidade de recomeçar» sem drama. Temos uma de duas hipóteses: ou falamos muito sobre os incêndios, atribuímos culpas, debatemos o assunto, e aguardamos que venham novos incêndios; ou recomeçamos tudo o que há para recomeçar, de facto, e assentamos em que é preciso explicar essa «necessidade das árvores». E que a necessidade das árvores não tem apenas a ver com a «necessidade de ter árvores», mas com a necessidade de amar as árvores.