setembro 04, 2003

DÚVIDA. «A dúvida, para a esquerda, é um património», diz o RandomBlog, de Tiago Mota Saraiva. Não será para todos? A direita duvidará menos do que a esquerda? A esquerda duvida mais? Recebo de F.M. um mail sobre a citação que escolhi no cabeçalho — de George Steiner. «Porquê essa citação?» Não sei. Não a encontrei num livro, mas citada num artigo sobre «as dúvidas de Steiner» — se não tivéssemos dúvidas, não tínhamos um blog. É essa sensação de dúvida que toma conta da frase: «We have no more beginnings.» Se pudéssemos começar tudo todos os dias não valia a pena ter dúvidas, uma certeza por dia bastaria; no dia seguinte, tudo se poderia reconstruir e esquecer. Mas a ideia de que nada se pode esquecer é mais dramática, é o que nos separa do brutal e do inumano. Por isso, quando encontro a frase do Tiago M. S. procuro na memória todas as certezas da esquerda, todas as coisas inquestionáveis que defendeu — e vejo como ruíram, como desapareceram com o tempo e com o fim do optimismo histórico. E vejo as certezas da direita (sim, Deus, Pátria) e vejo como ruíram. E como os patrimónios são coisas destinadas a ruir, a enriquecer, a perder e a esquecer. É por isso que a frase de Steiner me comove, como se a percorresse uma ventania da história, uma espécie de discordância com a corrente maioritária do tempo, uma lembrança melancólica do fim. E fico contente por ela suscitar perplexidades; as mesmas que deixou em mim.