setembro 04, 2003

O ERRO DE LÉVI-STRAUSS. Acho que esta discussão, morna e tranquila, é produtiva. A onda, tendo começado pelo Avatares de Desejo, passou por aqui, no Aviz, e depois para o Companhia de Moçambique (que assinalou o silêncio da antropologia diante do colonialismo, vencida pela sua tendência culturalista») e para o Dædalus. O Francisco Curate, deste último, assinala que «as posições político-ideológicas facilmente invadem as ciências, assumindo essa irrupção uma conformação difusa e límbica, que, muitas vezes, torna o discurso científico refém de apropriações posteriores indevidas» — o que permite recordar a «apropriação» que a extrema-direita francesa fez de algumas ideias de Lévi-Strauss. Também o Bruno Sena Martins tinha escrito que «as suas ideias foram apropriadas por grupos xenófobos dos países europeus», o que torna a coisa mais complexa ainda, para quem entende que estamos diante de uma perversão quase absoluta. Se bem entendo, pode haver aqui, velada, a sugestão de que esse discurso de Lévi-Strauss em 1971 (na conferência da Unesco) pode bem ter sido «um erro», ao permitir que se abrissem brechas por onde entrou a hidra da xenofobia e do racismo. Ora, o que me parece essencialmente útil (desculpem usar a palavra) nesse discurso é o facto de Lévi-Strauss ter chamado a atenção para a «desmoralização das culturas», arrastadas pelo relativismo (de que terá sido intérprete). O Francisco Curate define muito bem esse estádio: o da suspensão dos «juízos acerca da diferença cultural». É isso que acho assustador — o receio da «polícia multicultural» que pretende suspender todo e qualquer juízo e que pode chegar a interditar a discussão sobre a excisão feminina, por exemplo, em nome dessa convivência sem confronto.
As questões que o Rui M. P. colocou são muito precisas e concretas: no campo do colonialismo (e do sistema colonial português) não se coloca a questão desse confronto, mas sobretudo do poder, da arbitrariedade e da violência — e esse campo foi bastante trabalhado nos seus estudos. Já do ponto de vista europeu, ou ocidental, há uma perseguição ao «etnocentrismo» que, se abre o caminho a esse contacto de culturas, também impõe — muitas vezes militantemente, como uma obrigação moral — a diluição da própria cultura, como se quisesse desfazer-se de um sentimento de culpa, de um remorso (o remorso do homem branco). Daí eu ter usado a expressão dormindo com o inimigo ou mesmo sedução pelo inimigo (o termo inimigo é essencialmente poético).