RELATIVISMO & ANTROPOLOGIA. O Companhia de Moçambique, do Rui, meu Amigo e autor de um dos blogs de referência nas «ciências sociais», dedicado à história do colonialismo em Moçambique, comentou o pequeno texto que ontem publiquei sobre Lévi-Strauss. Ou seja, sobre a chamada de atenção que o Bruno Sena Martins deixou no Avatares de Desejo para esse discurso de Lévi-Strauss. O texto do Rui chama a atenção para aspectos que me interessam (a memória colonial), mas que, claro, me ultrapassam largamente. Fica aqui o texto completo, porque acho que vale a pena lê-lo e discuti-lo:
••••• A propósito de uma polémica evocação de Lévi-Strauss em Avatares de Desejo o meu amigo Francisco no seu Aviz refere que «as dúvidas e questões levantadas por Lévi-Strauss são muito actuais e acho que é um bom tema. Lévi-Strauss manifestou-se contra "o abuso de linguagem com que se confunde cada vez mais o racismo, definido no seu sentido estrito, com atitudes normais, mesmo legítimas e, em qualquer caso, inevitáveis". A partir daqui, um saltinho ao "multiculturalismo" dá-me sempre a ideia de que a expressão "dormir com o inimigo" é ainda mais dúbia». Vamos por partes, Francisco. Muito, muito antes da moda do multiculturalismo, evocava-se o relativismo cultural. Se este fosse o lugar adequado para uma arqueologia dos conceitos (tão do agrado dos académicos) depressa se descobriria uma genealogia extensa, envolvendo outros conceitos associados por relações de parentesco (conceptual) muito próximas, por vezes mesmo incestuosas. Quando, numa conivência assumida, a Antropologia se envolveu nos processos de gestão colonial, julgou poder desempenhar um papel algo filantrópico junto das populações dominadas; tudo se passaria como se a situação colonial não pudesse escapar da sua inevitabilidade e o antropólogo apenas destinado a tentar torná-la num mal menor, concorrendo, com as autoridades administrativas, para o bem-estar das populações submetidas. Ao assumir o colonialismo como uma mera situação de contacto cultural, a Antropologia limitou-se, nesse campo, a nada mais estudar que não fosse o ajustamento mecânico das culturas confrontadas pelo processo de dominação colonial. E mesmo reconhecendo que esse ajustamento produziria mudança social, ignorou a sua dimensão de violência e exploração. Nem mesmo o culturalismo americano dos anos 30 do século XX, na sua afirmação de diversidade e relatividade cultural, procurou conhecer e descrever essas tais «circunstâncias históricas» a que se referia Ruth Benedict quando, a propósito da expansão da civilização ocidental, analisava as circunstâncias que presidiram ao desaparecimento da consciência da diversidade e da relatividade de costumes e modelos sociais. Só após a 2ª Grande Guerra, com o subsequente despontar dos movimentos nacionalistas nos territórios coloniais, se procedeu a uma reavaliação do discurso antropológico em situação colonial. O colonialismo não poderia mais ser entendido nos termos de uma mera administração de uma realidade empírica, fechada sobre si mesma, à revelia de condicionalismos — sobretudo exógenos — de natureza económica, política e social. Descobriu-se, então, uma componente fundamental — melhor dizendo, fundadora — do sistema: a dominação. Toda uma série de operadores que lhe estavam associados, como o «contacto de culturas», a «aculturação» e o «sincretismo» deixaram de ser entendidos como manifestações de relações simétricas — give and take — para passarem a incorporar, na sua percepção, práticas dominantes e práticas dominadas. Assim sendo, meu caro Francisco, a utilização dos conceitos de relativismo cultural e multiculturalismo carecem de algum cuidado. Claude Lévi-Strauss foi, convém que se diga, o principal mentor de um relativismo dúbio. Trabalhando sobre materiais provenientes de contextos coloniais — e trabalhando brilhantemente — sempre contornou, quando não ignorou, a situação colonial, mesmo quando muitos dos seus discípulos (Jean Pouillon, Patrick Manget e mesmo Dan Sperber, entre outros) já afrontavam o «problema». Alguns anos antes dessa declaração na conferência de abertura do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial (1971), abordava a situação colonial [1966, «The Scope of Anthropology», Current Anthropology, vol. VII, (2)], numa das suas raras asserções sobre o tema, nos seguintes termos:
«Se o colonialismo não tivesse existido, o desenvolvimento da antropologia teria sido pelo menos retardado; mas, talvez, também a antropologia não tivesse sido levada, como se tornou o seu objectivo, a questionar o Homem integralmente em cada um dos seus exemplos particulares. A nossa ciência atingiu a maturidade no dia em que o homem ocidental se apercebeu que nunca poderia compreender-se a si próprio enquanto existisse uma única raça ou povo à superfície da Terra que ele tratasse como um objecto. Só então pôde a antropologia assumir-se como aquilo que é: um empreendimento de reassunção e remissão do Renascimento, de molde a difundir o humanismo a toda a humanidade».
Afinal, qual o lugar do colonialismo na História? Explicar-se-ia por uma qualquer espécie de «relativismo cultural» ou «multiculturalismo»? E qual a verdadeira dimensão destes conceitos? •••••
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