outubro 09, 2003

O REGRESSO DE JONI MITCHELL. O João Bonifácio esteve fora uns tempos e, no seu regresso, leu o que se escreveu na blogosera sobre Joni Mitchell (nomeadamente as conversas entre o Aviz e o Terras do Nunca). E, com uma justa e natural bondade, escreve sobre a musa:

«Pelas migalhas que recuperei da conversa (até porque não tenho tempo para estar a ir ler duas semanas de blogues a ver o que não li) fiquei com a ligeira impressão de que o Francisco não gostava da mais bela das compositoras femininas do século passado. Se assim for, este mail ainda poderá ser-me útil. Porque me causa alguma tristeza que ainda haja quem não goste de Joni (é-me difícil não me referir a ela no primeiro nome). Passo a explicar. Há cerca de três semanas deu-se o caso de ter de entrevistar Elvis Costello. A meio da conversa o senhor diz-me qualquer coisa de fascinante: "Joni Mitchell mudou completamente a forma de cantar o amor. Tirou-lhe a lamechice. Aristocratizou o banal, o diário. Quando ouvimos Joni Mitchell the world is a better place." Dá-se o caso de eu concordar em absoluto (no que esta palvra tem de mais frágil, e, por isso, comovente) com o senhor Costello. Cheguei tarde às terras da senhora Mitchell. Mas foi o assombro quando me recolhi nesse porto. Porque Joni é "a" mulher. Não é uma qualquer mulher — no sentido em que todos somos alguém, não propriamente ninguém, mas qualquer coisa. Joni não — Joni é sempre Joni —, mesmo que tenha sido todas as mulheres: a amante, a menina pequenina, a mulher que a tudo resiste, a que cai, a que se levanta. E sempre, sempre Joni. Joni levou a ideia de folk ainda mais longe do que Dylan. Impregnou-a de jazz, trabalhou os arranjos ao limite, construiu melodias complexas (e no entanto acessíveis), Joni escrevu como poucas. A dada altura do Aviz o Francisco refere que alguém assinala que "Mingus" é experimental. Sê-lo-á — mas no que a palavra tem de mais frágil, com uma carga de auto-exposição raras vezes vista na música popular. Joni queria escrever canções como Mingus (e Mingus é, juntamente com Brian Wilson, um dos poucos génios absolutos — aqui no sentido de dogma — da música popular do século XX), levar a escrita de canções à condição de arquitectura. "Mingus" é um álbum arriscadíssimo, não polido, não burilado, pejado de arabescos, curvas e contra-curvas. E é a maravilha, acredite-me. Exige, talvez, uma paciência que, por vezes, já não acreditamos sermos capazes de dispensar. Mas vale a pena. Mas se calhar onde Joni está nas suas sete quintas é no território-canção, no ambiente dylanesco de soltar as amarras e deixar-se levar pelas palavras (Joni foi, é preciso não esquecê-lo, amante de Cohen). nesse entido, a trilogia "Blue", "For the roses" e "Courts and Spark" atingem esse patamar de sonho que só estão ao alcance de "Blood on the Tracks" (Dylan) e "Songs of Love and Hate" (Cohen). Se o Francisco já sabia tudo isto — então perdoe-me a intromissão. Caso contrário aconselho-lhe (com tudo o que de arrogância tem esta achega) a procurar os três discos que lhe referi. Estou certo que com o tempo descobrirá em Joni mais que uma simples baladeira — eu, pelo menos, ainda lá volto, vez por outra, ver como andam as histórias de desamores dessa tão grande mulher.»

Fico sempre comovido com a comoção dos outros — neste caso, com a do João Bonifácio. E eu, que gosto de todo o Cohen e de Blood on the Tracks, fico a pensar que talvez tenha mesmo perdido este combate com a Joni Mitchell. Não sei, não sei. Terei de ouvir outra vez.