O REGRESSO DO PÂNTANO, AS AMEAÇAS DO BLOCO CENTRAL. [Artigo no J.N.] É muito provável que o presidente da República não tivesse feito o seu discurso de anteontem caso não fosse directamente visado pelo material que consta das escutas telefónicas — ainda bem que o fez dessa maneira aparentemente tranquila, respondendo às dúvidas dos cidadãos. Porque, como todos vamos concluindo, o retrato de conjunto paranóico em que se transformou o processo da Casa Pia é ainda pouco para o que veremos, para o que saberemos e para o que poderemos vir a suspeitar. É cada vez mais difícil sobreviver e manter a lucidez no meio dessa paranóia. Só assim se explicam algumas das intervenções políticas mais recentes e o complexo de exageros que diariamente o cidadão pode recolher pela Imprensa.
Portugal transformou-se no país da suspeita — sobre a justiça e as suas investigações, sobre os políticos e os seus encobrimentos e alianças, sobre a Imprensa e os seus «alinhamentos». No caso da Casa Pia, essa suspeita recai sobre mais duas entidades: os que estão a ser acusados de crime, e as vítimas desse crime. Não sei o que é pior, mas suspeito que a desvalorização do papel das testemunhas é um factor de perturbação que pode vir a tocar o limite do abjecto.
Se nos lembrarmos de outros casos semelhantes ocorridos — em Espanha —, o massacre das testemunhas conduziu àquilo que se teme que venha a acontecer em Portugal: a diluição do processo. A partir daí, a suspeita sobre as testemunhas leva ao fim da investigação. Claro como água. Seria conveniente proceder à comparação dos processos e dos acontecimentos, para evitar essa verdadeira hecatombe.
Provavelmente de forma involuntária, Francisco Louçã citou Guterres ao referir-se ao processo da pedofilia, usando as expressões «lama» e «pântano», depois do seu discurso na AR — a melhor intervenção parlamentar sobre o assunto. Em resumo, transformar o processo da Casa Pia num «processo político» consistiria, basicamente, em arrastar a política para o pântano em que se transformou o conjunto de pressões, desvarios e enormidades que têm vindo a ser produzidas todos os dias. Causa por isso alguma apreensão que Ana Gomes tenha — depois do «apelo ao silêncio», de António Costa — dado uma entrevista à Antena Um, em que reafirma que, para o PS, este será um «combate político». Só por isso, a realização de um congresso extraordinário do PS seria ou um ofício de defuntos ou uma sessão de psicanálise.
É curioso como algumas almas se têm mostrado mais sensíveis à violação do segredo de justiça e aos vários delírios judiciais, do que às consequências que a «pantanização» do processo podem vir a ter para o país inteiro. Essa permanente pantanização tem um objectivo claro — não apenas retirar peso e importância ao próprio caso (banalizando-o), mas também retirar credibilidade às testemunhas e vítimas.
Dentro de algumas semanas, caso a paranóia se mantenha, não faltarão vozes chamando a atenção para os prejuízos que o processo vai causar na imagem de Portugal (esquecendo que isto — o processo — é mesmo Portugal). Ora, a última coisa de que Portugal precisa, nestas circunstâncias, é de um acordo de Bloco Central para que tudo se dilua, tudo se perca em discussões entre juízes e advogados (cada qual com a sua república) e, afinal de contas, tudo permaneça neste limbo de suspeita. Tendo em conta que há vários indícios de que se pode preparar esse cenário, convém dizer, desde já, que esse será o pior dos sinais. A encenação dessa desistência moral da sociedade portuguesa (porque é disso que verdadeiramente se trata) não é tão absurda como isso. Basta ver a quem serve. [J.N.]
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