outubro 02, 2003

OS CRITÉRIOS DA ATROCIDADE. O Pedro Sá, no Descrédito, sugere uma coisa curiosa ao Nuno Gouveia, do Virtualidades, em resposta à pergunta deste último sobre o facto de a esquerda não se manifestar tanto sobre os crimes de Pol Pot como sobre os de Pinochet. Lembra avisadamente P.S. que ele há razões: o Chile está civilizacionalmente mais próximo de nós, que a intervenção americana e a morte de Allende foram factores determinantes, ou que o Cambodja é um país pequeno.
Ora aí está um problema.
Não alinho na desvalorização do 11 de Setembro chileno ou das ditaduras sanguinárias da América do Sul (neste momento abriu-se o debate no Brasil sobre a «guerrilha do Araguaia», um tema central e esquecido) — mas não caio nas mistificações ridículas, nem quando são repetidas até à exaustão por escritores-visitantes. No entanto, acho que esse argumento usado pelo Pedro pode, involuntariamente, contribuir para a banalização do mal. Já tratei o assunto na Grande Reportagem mas acho que vale a pena referir um interessante comunicado da Amnistia Internacional, datado de 9 de Abril último sobre os massacres do Congo/Brazzaville, referindo testemunhos de assassínios deliberados de populações desarmadas e indefesas por forças governamentais do exército regular e por ninjas. Resultado: desaparecimento de milhares de pessoas (muitas delas tentando escapar aos conflitos na vizinha República Popular do Congo e dos ataques de países cúmplices, como Angola). Só em Brazzaville, em Abril de 2003, milhares de pessoas foram vítimas de uma total inoperância das organizações de direitos humanos da ONU (nomeadamente do ACNUR). Numa segunda-feira de Maio de 2003 mais de duas mil pessoas foram mortas a sangue-frio no Congo/Kinshasa, na província de Ituri, no mesmo dia em que tomava posse o presidente Kabila. As atrocidades cometidas no Congo são já consideradas as mais violentas e criminosas da história da humanidade depois da II Guerra e podem acrescentar-se às «catástrofes humanitárias» (é esta a designação hipócrita utilizada, para não ferir susceptibilidades dos países da antiga «linha da frente», quando se quer falar dos ataques sobre a população civil) do Ruanda, do Uganda, da Etiópia, de Angola ou do Zimbabwe. Tal como no Cambodja, a cor das vítimas tem um peso substancial. Lá, por ser um país pequeno. Em África, naturalmente, por serem pretos. Como nos habituamos aos números dos pretos mortos, ou dos cambodjanos chacinados por um homem que se julgava Estaline, achamos que há um gap civilizacional. Que a vida não tenha importância, lá, pode discutir-se. Que a vida deles não tenha importância para nós, acho absurdo. Evidentemente que a cor dos carrascos também tem importância. Se for preto ou cambodjano, há sempre alguém tentado a relativizar.