OS POLÍTICOS E O DIREITO DE MENTIR. [Actualização para um tema discutido com o Mar Salgado, o Grande Loja do Queijo Limiano, o Bloguítica, o Glória Fácil, o Guerra e Pas, o Adufe, entre muitos outros.] Há anos (nem vale a pena lembrar...), a The New Republic, que não podia ser acusada, de modo nenhum, suspeita de fazer favores à Casa Branca de Clinton, publicava um artigo sobre o adultério em casos políticos conhecidos. Só a lista de políticos americanos (alguns deles, até brilhantes para o seu contexto) que sucumbiu devido à prática do adultério dava para encher uma boa página da revista. A tese era muito simples: o adultério é uma prática social «recriminável e condenável», e é suposto ninguém se gabar da sua prática. Em nenhum caso um político devia admitir ter caído nas malhas do pecado. E, em termos públicos, o que podia fazer seria negar, negar, negar até ao fim. «Lie!», era o título de capa da revista. Nem de propósito. Dois meses depois desse artigo, aproximadamente, a América festejava «mais um caso» de Bill Clinton. Um dos editores do Washington Post, feliz, comentava para um colega editor do sereníssimo e discreto Financial Times: «Há vinte anos que não tínhamos uma história assim.» Vale a pena dar mais exemplos: os apresentadores dos principais telejornais, nessa altura recrutados para Havana, onde acompanhariam a visita do Papa, voltaram para casa no primeiro avião — nenhum deles queria deixar escapar a crise nem, evidentemente, o disparo das audiências. A declaração mais preciosa vem, no entanto, do homem que acompanhou, para a CBS, o «caso Watergate»: «Senti hoje o mesmo cheiro a sangue que havia na Casa Branca em 1973.»
Este «cheiro a sangue» compreende-se. Do modo como estão as coisas, um telejornal, tal como a direita religiosa e republicana da altura, é capaz de tudo. Tudo estaria cheio de palavras como «alegado», «suposto», «suspeição», «atribuído a», «infere-se que», «é possível que» e outras expressões que a imprensa e a sociedade usam com abundância e originalidade quando sabem que não devem dar como certo um rumor que não tem interesse nenhum.
[Na altura, escrevi que a culpa era dos democratas. Não porque Clinton não fosse capaz de esfaquear, metódica e paulatinamente, o seu matrimónio — mas porque, até hoje, toda a campanha política pela «absoluta transparência» teria de dar no que sabemos. A primeira grande vítima foi, justamente, Bill Clinton. O «caso do juiz Clarence e de Anita Hill» (que tinha pormenores disparatados) foi apenas um levíssimo quadro que anunciava tormentas maiores para o género humano e para a liberdade. O que esteve em causa, com «o caso Clinton-rabo-de-saias», não era o temperamento do presidente americano enquanto «caso patológico». Toda a gente de bom-senso e de cultura mediana tem uma ideia do assunto. O que estava em causa, precisamente, era a liberdade e a chamada «esfera da privacidade» — de onde resulta a «tese do perjúrio». Clinton tinha o direito de mentir em matéria do chamado «foro íntimo». E tinha o dever de se demitir se aparecessem, depois disso, os testemunhos sobre os delírios na Sala Oval. Um presidente é um presidente.]
Agustina Bessa-Luís, numa crónica sobre o «caso Dreyfus» justificava algumas hecatombes e movimentos ideológicos por uma espécie de abundância do ódio em certos períodos históricos. Ora aí está.
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