PERDER A INOCÊNCIA. O Paulo Gorjão, do Bloguítica Nacional, refere a minha crónica de hoje no JN, lançando-me um repto para que comente as «duas excepções» ao princípio de que «a vida particular de um politico é isso mesmo: particular». O Paulo enumera-as: 1) «A primeira abrange situações em que o político esteja envolvido em actividades que violem o ordenamento jurídico vigente na altura.»; 2) «A segunda refere-se a comportamentos que o político condene no seu discurso político, mas que pratique na sua vida privada.» Como escrevi na crónica, «quem pratica crimes não pode nem deve deixar de ser julgado, independentemente das suas preferências ou aventuras sexuais». Mantenho que a vida do procurador Starr, em Portugal, seria muito difícil. Quanto ao segundo aspecto estou, por princípio, de acordo, mas levanta sérios problemas, nomeadamente quanto à identificação dos «vícios privados» diante das «públicas virtudes» dos políticos. Melhor: estou de acordo, como princípio, mas parece-me difícil estabelecer os critérios que identifiquem essa «discordância» entre o público & o privado. Por exemplo: é legítimo explorar ou investigar a vida privada de um político para ver se ela está conforme ao seu discurso público? Não. Acho, caro Paulo, que essa segunda excepção está exactamente sobre a linha que eu defini na própria crónica:«Há um risco aparentemente invisível de que convém não nos aproximarmos: o da moralização da vida pública através da Imprensa, por exemplo, é um deles. Se andar atrás de jovens no Parque Eduardo VII é criticável, e pode configurar um ilícito de certa gravidade, um passo em frente seria suficiente para cairmos na paranóia: um ministro que se dedica a actividades de comércio carnal com uma actriz, uma deputada que negoceia afectos com um deputado de outra bancada, um político apanhado em Bali na companhia de uma senhora. É importante definir os critérios dessa avaliação. Poderá um fumador ser ministro? Poderá um praticante de ioga ser juiz de um tribunal? Poderá um motard sentar-se no Parlamento?»
Outro exemplo, certamente confrangedor: um político que mantenha um discurso «moralizador» — e que se refira explícita e criticamente aos «adúlteros» ou ao «adultério», digamos — e que seja visto num hotel do Djibouti na companhia de uma dama, «indiciando adultério», deverá ser denunciado desse ponto de vista? Esse é uma pergunta que decorre dessa «segunda excepção». Eu percebo a ideia de «hipocrisia», claro — mas há na expressão «vida privada» um carácter absoluto e intransigente. Tenho, por isso, muitas dúvidas sobre «o grau de privacidade» a estabelecer. Se, por exemplo, um deputado aprovar legislação probicionista (anti-tabagista) no Parlamento, e for visto a fumar um charuto no Café de São Bento, ao lado da Assembleia — teria menos dúvidas (digamos que eu próprio tomaria a iniciativa de denunciar a baforada criminosa). Nos EUA seria necessária a presença de um porta-voz para esclarecer que o senhor deputado «não inalou».
É desejável um certo bom-senso, mesmo em matéria de princípios. Daí que, de entre as raras virtudes portugueses, eu ache louvável esse bom-senso. Lembra-se da campanha de rumores e de piadas sobre Sá Carneiro & Snu Abecassis? Na altura, a imprensa (o então semanário O Jornal, por exemplo) noticiava com tom «escandalizado» que havia figuras da igreja católica muito incomodadas com essa relação «extra-matrimonial». E que tinha o público a ver com isso?
Também por isso, embora o texto de José António Saraiva, no Expresso, não seja «moralista» ou «moralizador», é necessário ter algum bom-senso para que não se passem a vigiar os políticos tendo em conta a sua «vida privada». A menos, claro, que abram «as portas da sua casa e do seu coração» à Caras — então, a partir daí, que levem ambos: os políticos que acederam em posar nessas páginas e os jornalistas que viajaram para a ilha brasileira onde a Caras leva as celebridades.
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