outubro 12, 2003

PORTUGUÊS SUAVE, 6. Continua, por vários lugares, a discussão sobre o Português Suave. Paulo Caldeira — que é médico — expressava há dias, no Aviz algumas dúvidas sobre o verdadeiro risco de doenças graves no fumador passivo. Entretanto, o meu vizinho médico que, felizmente, não prolongou por muito tempo a sua ausência do consultório escreveu no seu blog que estava «provado que o fumador passivo também é molestado pelo fumo do tabaco do parceiro do lado». O nosso bom doutor, é «apologista que os fumadores tenham os seus espaços isolados»; eu preferia dizer desta maneira: é bom que os fumadores tenham direito a um espaço de modo a não molestarem os não-fumadores. É essencialmente a mesma coisa, razão porque há entre mim e o Médico uma concordância em muitas coisas.
Convém, no entanto, dizer que a ideia de um «instinto agressor» do fumador faz parte da vulgata ecofascista muito em voga entre velhinhas evangelizadoras e psicopatas recém-chegados ao «clube dos saudáveis». Num dos romances mais divertidos de Manuel Vázquez Montalbán, Asessinato en Prado del Rey, Pepe Carvalho recusa-se a fumar o seu charuto porque pressente — e bem — que o charuto se apagaria de tristeza diante do ódio anti-tabagista do seu interlocutor.

Seja como for, Paulo Caldeira regressa ao Aviz para comentar o assunto, contrariando o nosso doutor, e afirmando que não concorda que «ficou provado» que o não-fumador é contagiado fatalmente pelo fumador:

«Apenas observo que, baseado em observações epidemiológias falíveis, se generalizou a ideia que o fumador passivo tem um grave risco de doença, especialmente o cancro do pulmão. E porque é que não concordo?
Em primeiro lugar, e como já disse, a entidade de fumador passivo é algo difícil de definir. Pego num artigo científico português, de onde retiro este excerto, que bem o exemplifica: os estudos deste tipo, para avaliação do risco do tabagismo passivo, podem estar sujeitos a vários tipos de limitações epidemiológicas, que de alguma maneira poderão falsear a determinação do risco do cancro do pulmão. Passamos a analisar algumas descritas por Eriksen e colaboradores:
a) erro de classificação > tratam-se dos problemas ligados ao diagnóstico de cancro do pulmão, e ao «status» de não-fumador. No que se refere ao primeiro, no nosso trabalho todos os casos foram histologicamente confirmados, não sendo de excluir no grupo com adenocarcinomas algumas neoplasias secundárias; contudo num estudo conduzido por Garfinkel, ao excluir todos os adenocarcinomas, persitiu o efeito positivo do tabagismo passivo.A possibilidade de incluir fumadores ou ex-fumadores que se declaram não-fumadores, poderá falsamente elevar o risco do ETS, contudo dados recentes mostram excelente concordância entre os marcadores biológicos de exposição e afirmação da condição de não-fumador.
b) questionários > desde sempre se têm levantado dúvidas da capacidade descriminatória da informação obtida. Os estudos de Coultas e Brownson demonstram, contudo, a fiabilidade da história da exposição ao ETS através de questionários estruturados e com entrevistas estandardizadas.
c) «confounders» > a existência de outros factores de risco como a dieta e a exposição ocupacional, ou a interferência do nível social e educacional devem ser tomados em conta, pois podem ter um efeito de «counfonder» em relação à exposição ao tabagismo passivo. Embora estes aspectos não tenham sido abordados no nosso trabalho, os hábitos dietéticos, a história ocupacional e o nível educacional vão ser analisados no âmbito do estudo multicêntrico.
Este trabalho português está integrado no estudo europeu sobre risco do carcinoma do pulmão em fumadores passivos, conduzido por Paolo Boffetta . Faço notar duas coisas a propósito deste estudo. «Não fumador» é definido como consumo inferior a 400 cigarros/vida e, aparentemente, não fizeram nenhum teste biológico para confirmar essa condição. Concluem que o risco relativo da Ca pulmão do fumador passivo (só para cônjuge e trabalho) é de 1.15, o que não é nada de especial (embora significativo). No entanto em 3 centros esse risco foi inferior a 1 (efeito protector) e em 2 foi de 1 (efeito nulo). Não foram avaliadas outras potenciais exposições.
Outra razão: referi também que o risco de carcinoma do pulmão, no fumador e não fumador, tem muito a ver com factores genéticos. Coloco aqui só um abstract do Boffetta sobre o tema. Então porquê esta enorme campanha?
Tem a ver com muitas coisas. É claro que o fumar tem riscos importantes para a saúde, tornou-se socialmente correcto não fumar, é uma campanha atractiva para os média, é mais fácil fazer os fumadores parar de fumar se atrair sobre eles a ira dos não fumadores. Esta campanha vem da América, país de democratas e fundamentalistas. Assim como as tabaqueiras manipualm dados a seu favor, instituições públicas também o podem fazer. Só um exemplo de "manipulação" de dados que passa facilmente para os média: o tabaco causa cerca de 440.000 de mortes/ano nos EUA, causando cerca 5 milhões de anos de vida perdidos e cerca de 8,6 milhões de pessoas têm doenças atribuídas ao fumo do tabaco. Estes números de milhões são impressionantes.
Ora se virmos a tabela ressaltam duas coisas. As definições: fumador é definido (em contradição com o acima definido) como ter fumado mais de 100 cigarros/vida e manter hábitos alguns ou todos os dias, ex-fumador é ter fumado mais de 100 cigarros na vida e não manter hábitos actuais, não fumador como ter fumado menos de 100 cigarros/vida. As doenças: estão incuídas, nas doenças relacionadas com o tabaco, o AVC e o enfarte do miocárdio. Desta maneira (quase) todos nós somos fumadores ou ex-fumadores.
Desta maneira um velhinho de 70 anos, cheio de diabetes, colesterol e que fuma 1 ou 2 cigarros por semana, ao ter um banal AVC passa a constituir morbilidade associada ao tabaco, e se morre, uma morte atribuível ao tabaco.
Já chega. Não tenho nenhum interesse na indústria tabaqueira, não defendo o hábito de fumar. Apenas condeno campanhas acéfalas baseados em dados científicos pouco seguros. Qualquer médico sabe que, epidemiologicamente pode-se "provar" tudo, até que homens de bigode farfalhudo têm mais calos nos pés!»


Eu também concordo com o Paulo Caldeira, porque me convém, evidentemente. Mas o que me assusta, realmente, é acabarem com o «Suave» do «Português Suave». Isso é um golpe e tanto.