outubro 01, 2003

RELIGIÃO, PARTE DOIS. Nas últimas semanas a blogosfera tocou no assunto «religião», em resposta a um repto lançado, entre outros, pelo Janela para o Rio. O tema que suscitou mais interesse foi, infelizmente, o da relação entre «religião & política», como se aí se esgotasse a ligação entre a religião e o mais imediato de nós (além de traduzir, evidentemente, uma certa fixação de muitos blogs: como se todo o debate ideológico tivesse de ser tão imediato como isso), e como se todas as opções fossem «clubísticas». O «regresso das religiões» não é coisa nova, mas foi mais escutado quando se falou da «constituição europeia» — e talvez venha daí o tom de «política imediata» neste debate sobre «religião». Escrevi na altura: «Eu não gosto especialmente de falar sobre Deus — é um problema entre mim e o deserto e muitas vezes é difícil explicar essa relação sem identidade a quem não está disposto a mudar de dicionário. Essa linguagem ainda não está inventada e o que não tem nome não existe, já se sabe (os leitores de Wittgenstein escusam de comentar). Mas quando se fala de um Deus europeu o que está em causa não é Deus mas sim a Europa.»
O que me assusta nas «democracias cristãs» e nesses apelos do dr. Portas à «matriz cristã da Europa» (mas aceitaria a discussão) é a necessidade de ter Deus «do seu lado». É tão perigoso, isso. Tão caricato, também, tão falso. Nenhuma entidade política pode reivindicar essa ligação. Incomoda-me esse excesso de indignação por causa da «ausência de Deus»; os arcebispos e os acólitos de igreja matriz não são de confiança — esse catolicismo fácil, cheio de tradição e de peregrinações não me comove um instante (mas ninguém tem de ser como eu). O problema é confundir-se Deus com a «tradição de Deus» na Europa. Essa tradição não foi boa, nunca foi boa e lembra as investidas do padre Carreira das Neves quase pré-conciliar, bradando contra os judeus e os deicidas. O Deus desta Europa desapareceu há muito.
Lamentavelmente — e volto a insistir em coisas que têm sido escritas nos dois blogs onde o «sentimento religioso» está mais presente, o Crónicas Matinais e o Voz do Deserto, por exemplo —, falou-se pouco de religião e escreveu-se mais sobre Bush e essas desinências.
Naturalmente que a experiência religiosa não tem de ser debatida sempre na mesma linguagem — mas isso só acrescenta mais argumentos em favor do silêncio. Como se tivéssemos gasto muito o nome de Deus — que devia ser um pássaro na nossa gramática, uma palavra a menos quando estamos a falar. Só se devia dizer o nome de Deus em silêncio absoluto.