outubro 02, 2003

RELIGIÃO & POLÍTICA. A propósito de um texto antigo do Aviz sobre religião e política e sobre o facto de eu achar relativamente absurda a expressão «democracia cristã», o Miguel enviou um mail:

«Não consigo conceber a democracia cristã como o apropriar da religião por parte de um punhado de homens que forma um partido. A democracia cristã encontra o seu fundamento na Doutrina Social da Igreja, actualizando-a e convertendo-a em manifestação política, e nessa actualização e conversão, a DSI perde a sua vertente religiosa e, nesse sentido, deixa de poder servir como referencial aos católicos. A democracia cristã passa pois a estar na disponibilidade do homem, católico ou não, como um conjunto de ideias políticas, tão discutíveis como quaisquer outras, e em nada dependentes da fé. Disso se apercebeu a Igreja Católica, que nunca conseguiu ter boa relação com os partidos democratas cristãos, e que nas suas encíclicas sempre definiu a democracia cristã como um movimento social, e nunca religioso. Disso se apercebeu também a nossa Igreja do pós Revolução, que se desdobrou em iniciativas várias para impedir a existência de um partido democrata cristão em Portugal. Concebo a democracia cristã, sobretudo na sua segunda fase, a fase do pós-guerra, como um conjunto de partidos que encontrou na Doutrina Social da Igreja os princípios básicos de actuação política. E esses princípios, ao contrário do que normalmente se pensa, não estão na esfera moral, mas sim na esfera social. É o princípio da solidariedade, da subsidiariedade, da dignidade humana como valor fundamental...
O que verdadeiramente distingue a democracia cristã é precisamente o de apenas se apoiar num pequeno conjunto de princípios, embora muito fortes, que comportam construções diversificadas e que facilitam a sua estruturação em partidos catch all. O que distingue a democracia cristã não é o seu apego aos valores morais da Doutrina Social da Igreja, bem mais presentes em partidos conservadores, mas sim o seu apego à construção e reforma social de acordo com aqueles princípios que, de uma assentada, impedem Estados centralizadores, totalitários, socializantes, egoístas, liberais, assentes no capital.
É por isso uma doutrina mais pragmática, mais vocacionada para o Governo e para a reconstrução dos países do pós-guerra, do que propriamente para os problemas morais. Certo é que existem variadas modalidades de partidos democratas cristãos, consoante os sistemas políticos em que se inserem, mas o que os caracterizava era precisamente o de conseguirem congregar pessoas de vários quadrantes políticos, mais preocupados em reformar de acordo com princípios básicos, do que propriamente discutir as ideologias. Actualmente, a democracia cristã não faz tanto sentido, porque grande parte das suas conquistas ideológicas se estenderam a vários quadrantes políticos. A economia social de mercado, a descentralização, o humanismo económico e a aversão por estados socializantes ou excessivamente liberais fazem já parte da cultura política de partidos políticos de direita e de esquerda, sem necessidade de se apoiar na Doutrina Social da Igreja.
Em resumo, do estudo que fiz da Democracia Cristã, consigo concebê-la mais como uma prática de governo, tendencialmente de centro-direita, do que como uma verdadeira doutrina política que misture religião e política. E perante uma observação dos vários partidos democratas cristãos europeus, penso ser a interpretação mais correcta.[…]»