outubro 10, 2003

UM ESPECTÁCULO PORTUGUÊS, 2. O chamado escândalo da pedofilia despertou algumas intuições sobre o funcionamento real do país – não sobre o país da Expo, o país do Euro 2004, o país festivo, o país das boas estatísticas. Nem sequer sobre o país das más estatísticas, porque há coisas que não cabem em números. Basta ter visto a reacção corporativa dos portugueses diante das suspeitas lançadas sobre os seus heróis ou os heróis dos vizinhos: o país desfaz-se rapidamente em jantares de solidariedade, em indignações, em elogios de carácter e em virtudes ofendidas. Mas, por debaixo, bem lá no fundo, é o mesmo país que vive do seu ressentimento e das suas vinganças pessoais. Desde que descobriu o «direito à indignação» que o País se tornou mais infantil e despropositado — não porque os portugueses não tenham o direito de se indignarem, mas porque a indignação (a coberto da comoção visceral, da revolta pungente) se transformou num negócio político e num espectáculo para as televisões.
No caso da pedofilia, já estava tudo escrito há muito tempo: o que se supunha que seria um processo escandaloso pela natureza do crime propriamente dito, acaba por sê-lo, também, pela forma como o país tenta escapar à imagem que projecta no espelho.
Não é agradável, essa imagem, mas já devíamos estar avisados – o país iria entrar, de facto, em convulsão. É, aliás, extraordinário, que tenham surgido nos últimos meses bastantes vozes preocupadas com a «perturbação nacional», como se fosse negativo o facto de o país se perturbar, finalmente, com o escândalo da Casa Pia. A quantidade de cidadãos que deviam manifestar algum juízo e, pelo contrário, se puseram a citar Kafka a propósito e a despropósito do inquérito judicial, dá para compor um retrato de uma esquizofrenia bem pensante. Na verdade, esta reacção contra «os perigos do inquérito judicial» só é possível num país que atravessou meio século de censura e de vida subterrânea – durante esse meio século a vida da Casa Pia foi silenciada e todos os rumores escondidos debaixo do tapete. Não só na Casa Pia, evidentemente, mas no país inteiro, no país das conveniências e da moral.
Não há nisto qualquer desejo de criar culpados a todo o custo – o ideal seria, aliás, termos um país de inocentes e de insuspeitos (não de bem-comportados). Não temos. Em seu lugar, temos processos incompletos, inquéritos desvalorizados, debates interrompidos, tudo por causa desse silêncio gerido a meias pelos incólumes e desse ruído desejado pelos desgraçados. E temos um magnífico ressentimento português a funcionar contra tudo o que desafie essa tranquilidade do passado, quando o país era um território cheio de melros a cantar nas oliveiras, de ramo em ramo, na alegria da ignorância.