outubro 11, 2003

UMA ONDA DE PARVOÍCE, 2. A linguagem dos técnicos do Ministério da Educação é, na maior parte das vezes, incompreensível: esquece o seu destinatário, esquece os problemas. Se nos últimos anos do sistema de ensino em Portugal pudemos assistir a alguma experiências pedagógicas «interessantes» — ou seja, cativantes na sua «forma» — isso deve-se mais ao empenhamento de professores, isoladamente, do que às estruturas da própria instituição. Mas isso não retira nada ao clima de barbárie científica vivido no «secundário», em matérias como o ensino da língua e da literatura, bem como na escolha dos autores representativos da nossa literatura. Tem-se esquecido o estudo da nossa história, dos clássicos portugueses, da literatura. Em favor de quê? De uma preocupação (e isto não implica o menosprezo do ensino vocacionado para as «saídas profissionais», como se verá) pela actualidade, pela contemporaneidade, pelos «cortes temporais» que representam passos essenciais da história portuguesa através de esquemas simplificados e anedóticos (como se a história não fosse uma narrativa), e em nome de um desprezo curioso pela erudição, pela passagem do tempo e pelo «esforço de aprender» — tudo substituído por textos seleccionados pelos alunos de revistas de televisão ou, acrescento eu, para «análises» nas aulas. Passear pelas propostas de «análise textual» de alguns manuais escolares de Português poderá ser uma boa oportunidade para rir, caso não se trate de matéria séria demais. É tal a quantidade de asneiras, de leviandades apresentadas como «certezas científicas», de expressões defeituosas em termos gramaticais, de esquemas que de tão simplificadores deixam de se poder entender — que bem poderíamos manifestar mais compreensão pelos adolescentes que vagueiam pelos corredores das escolas secundárias.
Sendo verdade que a escola está mais aberta ao mundo exterior, que recebe mais visitas de escritores, de historiadores, de políticos, de gente viva, não se pode ignorar que a essa actividade não corresponde o esforço posterior (ou anterior) de aprofundar as matérias tratadas nesses encontros. Por um lado, a leviandade tomou conta de grande parte do ensino do Português e da História; por outro lado, o tratamento de «assuntos elevados» (presentes nos textos trabalhados em algumas aulas) não é acompanhado pela insistência em algumas coisas básicas: o valor a conferir ao conhecimento, à aprendizagem, à investigação, à leitura. A referência, omnipresente em todos os programas de ensino, à ideia de «problemática», esquece que só se pode «problematizar» aquilo que antes se estudou realmente. Há uns anos, um cavalheiro da APEL (uma agremiação de editores & livreiros), manifestou-se contra a existência de «livros pesados». Acredito. Depois de ver os que existem, ficamos entendidos. E tem razão, o senhor: quantos alunos leram, de facto, Os Maias (tirando o caso dos de uma professora de português de Mirandela que, conforme se noticiou na altura, «se tinha esquecido do Eça», e não o mencionou nas aulas)? Tão pesado, tanta maçada. E Cesário? E Vieira? Tão pesado. E para quê ler Os Maias, se há livros que o explicam «como deve ser», e com as munições da gerigonça universitária? E para quê interrogar-se sobre a própria ideia de «que literatura escolher», se os exemplos a colher vêm nos livrinhos divulgados em vulgata ou só em anos recentes? Para quê tomar a literatura portuguesa como corpus de serviço para o ensino do Português, se os mestres de linguística da antiga escola estrutural advogam o privilégio da «língua oral» sobre a matéria escrita?
Mas se estes são problemas concretos na área das humanidades, existe por detrás um monstro a permitir a sua existência: as vulgatas de Ciências da Educação — de que os alunos dos CIFOP conheciam a existência, as alíneas, os versículos, a demonologia, a metafísica e sobretudo o novo-riquismo. Por detrás das Ciências da Educação, e da pragmática erigida em teologia autoritária, transformadas em detentoras de todo o conhecimento sobre a actividade pedagógica e sobre a arte de ensinar, existe, claramente, um outro monstro: a tecnocracia, aplicadíssima, pesarosa e grave — aduladora do relativismo cultural e de tudo quanto retire humanidade às humanidades, inconsciente e irresponsável no seu anonimato de «comissão de serviço no Ministério» ou semelhantes postos. Mas quase sempre no anonimato, num universo sem rosto e muito satisfeita consigo própria.
Por todos estes motivos, o debate sobre os «curricula» e o sistema educativo não diz respeito apenas aos técnicos do Ministério da Educação. A prova está à vista neste manual que propõe aos alunos que estudem o regulamento do Big Brother e que ilustra Camões com Renoir (as autoras dizem que o contexto histórico-cultural não é importante).