novembro 03, 2003

GEORGE STEINER. «O nosso sentimento actual de desorientação, de recaída na violência, de perda na insensibilidade moral; a nossa viva impressão de uma quebra profunda no campo dos valores da arte e no da decadência dos códigos pessoais e sociais; os nossos receios de uma nova “idade das trevas” em que a própria civilização, tal como a conhecemos, possa desaparecer ou se restrinja a pequenas ilhas de preservação arcaica — esses receios tão palpáveis e generalizados que se transformaram num cliché do estado de espírito da época — tiram de uma comparação a sua força e a sua evidência aparente. […] A nossa experiência do presente, os juízos, tantas vezes negativos, que fazemos acerca do nosso lugar na história, vivem continuamente contra o fundo daquilo a que eu gostaria de chamar o “mito do século XIX” ou o “jardim imaginário da cultura liberal”. […] A minha tese é que certas origens da inumanidade, da crise que nos obriga hoje a uma redefinição da cultura, devem ser procuradas na longa paz do século XIX e no nó mais denso do tecido complexo da civilização. […] A arte, as investigações intelectuais, o desenvolvimento das ciências, múltiplos sectores de actividade universitária, floresceram numa estreita proximidade espacial e temporal relativamente aos campos de extermínio. Ao contrário do que acontecia nas fantasias das fábulas apocalípticas do século XIX, a barbárie irrompeu do coração da Europa.»
In Bluebeard's Castle