O ELOGIO. Álvaro Cunhal escreveu um artigo no Avante!. Esta novidade apanhou de surpresa a blogosfera inteira. Com esta idade, o velho comunista é elogiado à esquerda e à direita como um homem de ideais e de velhos combates. É um personagem, sim — mas convém haver bom-senso. Para a direita, Cunhal é um personagem inofensivo, longe das ruas e da conspiração, retido em casa pela doença e pela idade, testemunho prestes a sucumbir aos ventos da história; um artigo seu pouca importância tem, mas convém lembrar a «coerência», o «espírito combativo», a «discordância e, ao mesmo tempo, o respeito»; a sua idade e o facto de não ter mudado uma linha na gramática são uma lição que convém erguer contra a esquerda que já não sabe onde anda. Para a esquerda, Cunhal é também um nome a brandir, mas com reservas e cuidados extremos: a sua ortodoxia é uma aragem romântica, encostada aos muros da história, o estandarte que ela já não transporta mas que a sua cabeleira branca relembra; em vez dos seus textos de O Partido com Paredes de Vidro, o afecto de Cinco Dias, Cinco Noites e a cinefilia que se apodera de Até Amanhã Camaradas; em vez da discordância clara, a companhia sem discussão, o exemplo de combate.
A verdade é que o Cunhal de ontem é o Cunhal de hoje, nunca deixou de ser. Pode respeitar-se a sua idade, mas não é preciso venerá-la como um argumento. Escolheu a sua vida, não em nosso nome. O seu artigo podia ter sido escrito aos cinquenta ou aos sessenta anos, a lógica profunda está lá (há vinte, trinta, quarenta anos), a mesma argumentação, a mesma geometria. Essa coerência (e essa inteligência estratégica) pode admirar-se mas não deixa de ser a coerência de Álvaro Cunhal, apenas a sua. Não temos de admirá-la só por ser coerente.
Quando, um dia, na televisão, o entrevistador lhe lembra as críticas de António José Saraiva (o ex-comunista Saraiva, sim — «traidor», portanto, desertor), Cunhal encolhe os ombros e, com aquela crueldade que se tinha habituado a dividir o mundo entre heróis, combatentes, traidores e outras classes, diz: «Esse está é velho.» Estava, sim; estava velho. Mas o «velho Saraiva», o Saraiva da literatura, da bóina nos corredores da faculdade, o Saraiva que decidiu pensar tudo como se não houvesse mais mandarins, esse Saraiva não se incomodava por estar velho. Nunca gostou daquele livro Os Mortos Permanecem Jovens (lembram-se?). Por isso, não podemos dizer, sobre Cunhal, «esse está é velho», para lhe desvalorizar as ideias e aceitar-lhe a coerência ou uma eventual «proposta renovadora» depois de muitos anos a desconfiar de «propostas renovadoras». É apenas Álvaro Cunhal. Cunhal diz o mesmo. Não venham é desenhar um Cunhal que ele não gostava de ser: um ícone para pôr na t-shirt.
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