novembro 23, 2003

O QUE FALTA À BLOGOSFERA. O Paulo Querido publicou no seu blog um bom texto com este título. Trata, no essencial, de questões que já preocuparam por diversas vezes os blogs mais atentos ao «fenómeno» (hoje já não é fenómeno nenhum) — e é muito pertinente. Aborda, também, o «efeito pernicioso» dos blogs «mais mediáticos» — o Abrupto, o Dicionário do Diabo ou o Aviz, por exemplo — nomeadamente o seu compreensível efeito totalitário (a expressão é minha, não do Paulo — mas acho adequada à circunstância). Ora, há aí um problema que não tem a ver com o peso de um blog, com a sua influência ou a sua presença permanente, mas com a forma como é feito. Só posso falar por mim, até porque o blog é só meu. Comecei o Aviz como toda a gente: para experimentar e para ver se era possível dizer alguma coisa. Acabou por ser um diário com poucas interrupções; nunca medi audiências e o assunto pouco me interessa; tem uma circulação que desconheço (uso o netcode.pt para fazer rastreio de «referências» e não para contar visitas); é «intimista» quando me apetece, confessional quando preciso, irritado quando acontece. Ainda no meu caso — o que é estritamente pessoal, portanto, oscilando nesta fronteira do semi-público — nem sequer o faço para escrever sobre coisas «que não cabem noutro lugar» ou para «fazer exercício». Faço-o enquanto houver blogosfera, e mais nada — e enquanto tiver tempo ou precisar de escrever sobre o que me apetecer, sem agenda, sem alguém a pedir-me satisfações. Esta questão da agenda reconheço que é importante, mas não me interessa para nada; continuo a dizer que escrevo sobre o que me apetece, quando posso (ou não posso evitar), sobretudo porque não tenho e nunca tive responsabilidades políticas, mas também não reinvindico nenhuma inimputabilidade política.
A blogosfera é uma comunidade disponível, muito aceitável culturalmente, e tenho aprendido bastante com ela. Se conhecemos pessoalmente os autores de blogs, sabemos que os seus defeitos e vastas virtudes continuam; dos outros, só conhecemos os textos e o mau carácter (que transparece sempre), o que é bastante. Como em todo o lado, essa disponibilidade afecta tanto os «blogs mais mediáticos» como os absolutamente anónimos graças a essa pequena mas graciosa circunstância de não haver controle sobre o que possam dizer uns dos outros, ao contrário da televisão ou dos jornais, por exemplo.
Não me agradaria nada ver os blogs (como estes, que leio) transformados em «órgãos de comunicação social» com o peso jornalístico que lhe é atribuído muitas vezes. Mas isso é com cada um. Confesso, aliás, que os blogs menos interessantes são os que estão permanentemente dependentes da agenda dos jornais — à esquerda e à direita. Não porque acabem a falar uns para os outros, coisa que é inevitável em tudo (e não me parece mal, pelo contrário; pelo menos fala-se para alguém), mas porque a mim me interessam menos. Quando escrevo que a mim me interessam menos, isso significa, também, que sou e sempre fui contra um «estatuto editorial» da blogosfera (já escrevi aqui sobre isso), contra a limitação dos temas, contra a limitação dos tons em que se escreve. A blogosfera agrada-me também por isso, por poder ser anárquica nessa matéria e ninguém poder impor ao Pacheco Pereira que não escreva sobre a luz, o equinócio ou a filatelia, ou ao Pedro Mexia que não escreva sobre bandas pop, actrizes bonitas ou fenomenologia, ou impor ao Náufrágios que só escreva sobre barcos encontrados no fundo do mar dos Açores, ou proibir o Jorge Marmelo de escrever sobre literatura brasileira. Ninguém pode obrigar o Joel Neto a comentar o Benfica, pedir ao Contra a Corrente que não seja de Évora, ou exigir ao João M. Fernandes que seja «politicamente certinho» e que não se diverta quando quer. É como pedir-me que não me divirta sinceramente com um dos blogs de que mais gosto (e que mais invejo pelo permanente sentido de humor), o dos Marretas, por exemplo, ou alguém irritar-se por o Tiago ser protestante e o Rua da Judiaria ser judeu. Se o Alberto Gonçalves, que geralmente escreve sobre política, quiser escrever sobre aqueles dois restaurantes fantásticos de Bragança e de Mogadouro, isso é mau? E se o Avatares de um Desejo, o A Aba de Heisenberg e o Klepsydra decidirem que durante uma semana só comentam futebol? Temos polícia à porta?
Daí que, embora não concorde com as posições políticas de muitos «blogs políticos», não estou para dar lições nem para ir, a correr, recebê-las. Aliás, uma das coisas boas da blogosfera é precisamente isso: o ar ridículo que toma logo quem aparece a dar lições, a vestir-se de sacerdote, a impor uma agenda ou — vamos lá... — a aborrecer-nos com a sua infinita presciência, quase sempre gritada com a impressão de que se ganhou uma grande batalha intelectual.
Ou seja: a blogosfera também me agrada porque ninguém pode impor silêncio seja a quem for, nem pode obrigar seja quem for a falar sobre aquilo que acha que devia ser matéria para pronunciamento.
Ora, apesar do «efeito pernicioso» dos «blogs mais mediáticos», reconheço que muitos textos que me comoveram, que chamaram a minha atenção por motivos sérios ou risíveis, vêm de blogs anónimos (ou, pelo menos, de pessoas que não conheço). São, como escrevi antes, relâmpagos que iluminam a paisagem. A paisagem, nós sabemos como é: tem os seus declives, os seus rios, as suas montanhas — mas os relâmpagos não são previsíveis como a paisagem. De vez em quando descubro um blog que tem aquela frase, ou que vê aquele pormenor. Como isto não é uma batalha letal, não digo que eles estão certos — digo só que me juntei a eles, que os juntei nas minhas leituras, que me comoveram de alguma maneira. O que me basta perfeitamente. Se quiser mais, vou à biblioteca.
O resto é como na vida em geral. Não gostam? A porta está aberta nos dois sentidos. Só está cá quem quer.