novembro 02, 2003

PANTEÃO. Ainda não tinha mencionado o Letra Blog nas minhas leituras, mas foi por distracção, porque se trata de um blog que vale a pena acompanhar. Ora, o L.B. protesta contra o meu «encolher de ombros» em relação à «operação Harry Potter» no Panteão Nacional. E escreve:
«Não Aviz. Não, não e não. O Panteão não se pode prestar a pantominas, por muita graça que achemos ao Potter e seguidores. De uma vez por todas, Portugal precisa de uma geração que não seja rasca, e ser rasca é achar que tudo e todos servem para a graçola fácil. E aqueles que lá estão, no silêncio, não precisam destes barulhos para serem lembrados. Precisam de outros, concordo, mas destes, não. Nunca mais. É Portugal que ali está, teoricamente. E Portugal, teoricamente, merece uma consideração que ultrapassa largamente o lançamento de um livro do Harry Potter, ou de qualquer outro livro, ou disco, ou filme, ou carro, ou perfume, ou relógio ou... imagine o resto, se não se importa.
No limite, Francisco, houve profanação: o Panteão é assim a modos que uma espécie de cemitério. Imagine o meu amigo as capas dos tablóides, se o caso se tem dado a coberto da noite no cemitério de Almoinhas-de-Baixo. Seriam os meus antepassados, ou os seus, ou os de um qualquer outro Almoinhence. Mas não. A coisa aconteceu no Panteão (com o beneplácito do IPAAR — Arq.° Rodeia, não esperava isto de si), o cemitério onde repousa, ou devia repousar, a nossa herança colectiva, se é que isso ainda existe. Há limites que não devem ser ultrapassados. Podem, mas não devem. Sob pena de cairmos na banalidade. E não há nada pior para a auto-estima, que a banalidade do dia-a-dia. Portugal é, neste momento um país sem auto-estima. Não precisava de mais esta. Que não se respeitem os vivos, vá lá... mas os mortos, senhores, quem fala por eles? A dessacralização dos lugares é meio caminho para a desestruturação da sociedade. O
Genius Locci foi violado. Não, Francisco. Mil vezes não. Desta vez, discordamos. A propósito: também nunca entrei no Panteão. E mesmo assim estou incomodado, como vê.»

Ora, eu não sei quais as razões que levaram o J. B. Rodeia, do IPAAR, a autorizar a «operação Harry Potter». Mas gostaria de ir por partes. 1) Não tenho preconceito nenhum contra as aventuras de Harry Potter e, no entanto, li aquelas frases de Harold Bloom sobre o livro. Fui dos primeiros a comprá-lo, no dia seguinte ao lançamento — num supermercado — para oferecer e enviar pelo correio. Não li ainda nenhum dos volumes, mas vou ler. De uma vez li quatro livros do Paulo Coelho para escrever um artigo, «Li Paulo Coelho e sobrevivi», mas suspeito que com o Potter me vou divertir (o Coelho é charlatanice pura — tenho aqui uma vasta lista de adjectivos sobre ele... —, tirando uma canção que escreveu para a Elis Regina, acho eu). Até agora, Harry Potter só vi no cinema. 2) Sou sensível (como escrevi) aos argumentos sobre o espírito do lugar, mas não pude deixar de rir com a solenidade do protesto de José Lello. Ele também se deve ter rido bastante. 3) O espaço nobre do Panteão não foi usado para a «operação Harry Potter» — não imagino que pudesse ser de outra maneira. Não houve gente a correr ou a jogar à cabra-cega nos corredores. Enterneceram-me aquelas pessoas que foram lá comprar o livro para o neto, para o irmão ou para si próprios (sobretudo, está bom de ver, os miúdos que vão seguir as aventuras de Harry, da Hermione e do Ron — neste livro acrescentados do gorducho primo Dudley — no colégio de Hogwarts, para escapar à fúria de Voldemort) e tive pena de não ter ido lá comprar o meu exemplar, com a rapaziada atrás. Era um livro, não era de Paulo Coelho, e não se tratava de um detergente. 4) Os monumentos nacionais deviam ter uma área para acontecimentos desta natureza. 5) A lógica da utilização da área cedida do Panteão servia às mil maravilhas para o Harry Potter, embora eu escolhesse outro. 6) Também sou sensível ao argumento, utilizado por L.B., sobre a «banalização dos lugares», mas a última vez que se falou do Panteão foi a propósito de D. Amália. Já lá vai um tempo. E, num país onde o lugar mais sagrado para três televisões e trinta e tal jornais é um estádio de futebol rodeado de lençóis de lama, não sei o que é pior — se pôr o Panteão nas mãos dos miúdos, se suportar em silêncio esta gritaria toda em redor dos panteões da bola. 7) Aqueles miúdos já sabem que há um Panteão Nacional, o que é uma vantagem adicional — depois de ler umas páginas dos manuais e livros de fichas de História de um dos meus filhos, volto a não me irritar com a utilização daquele espaço. A dessacralização da nossa História já começou — na escola.
E é assim, meu caro L.B.. Acho que, desta vez, não concordamos.