ANTI-SEMITISMO E ANTI-ISRAEL. Caro João: obrigado pelo teu texto sobre o anti-semitismo: «Ao Aviz só posso dizer que o anti-semitismo está para durar. Como todos os males, por mais que se combatam. Muito sinceramente, acho é que acusar a União Europeia de fazer o jogo do anti-semitismo não leva a lado algum. E acho que entrar no maniqueísmo de comparar as medidas policiais/legais, ou mesmo a cobertura mediática, do anti-islamismo com o anti-semitismo é completamente injusto. O Francisco fala de exposições de cartazes anti-semitas em França, logo o país onde o Estado está a travar uma feroz luta contra as tentativas de uma quase-islamização de escolas e repartições públicas. A Europa não pode servir de bode expiatório para tudo.»
Parece que, finalmente, nos entendemos na «blogosfera» a propósito do anti-semitismo — o que não quer dizer que passemos a estar de acordo em relação ao assunto, nomeadamente acerca das razões que levaram à não divulgação imediata do documento em forma de draft, o que significa que, ou as nossas fontes são diferentes (necessariamente, são), ou o entendimento que fazemos das justificações também o são (provavelmente).
De facto, sempre lutei neste blog contra a designação do anti-semitismo como uma realidade política ou estritamente política. Quando se continua a fazer a divulgação da palermice dos Protocolos dos Sábios de Sião, não é só a questão palestiniana que está em causa (sobre isso já disse o suficiente e não preciso de reafirmar o mesmo de todas as vezes que falo do assunto: estado palestiniano, já; apoio — expectante — em relação ao documento de Genebra). É o anti-semitismo claro e histórico. A televisão egípcia terminou agora a exibição de uma série inspirada nessa mistificação (a televisão egípcia é o estado egípcio), que passará agora na Síria. No passado, esses países (através da Liga Árabe) propuseram colaboração ao regime nazi para «completar o trabalho na Palestina». Ainda não mudou a pauta.
Quando eu falo da Europa, caro João, não falo da União Europeia: falo da Europa. A melhor abordagem a este assunto é, em meu entender, feita por George Steiner (que nunca pode ser acusado de sharonista ou de coisa semelhante): o anti-semitismo europeu é um «mistério teológico» — «um ódio sem objecto actual» possível por «certas falhas do tecido cultural ocidental» («o anti-semitismo soviético talvez seja a expressão mais paradoxal do ódio da realidade pela utopia fracassada», tal como o «anti-semitismo nazi» foi uma «retaliação demente, uma insurreição contra a insistência de uma visão intolerável e uma larga medida de automutilação»; «A sociedade secular, materialista, belicista, da Europa contemporânea tentava extirpar de si própria, da sua própria herança, esses portadores de ideal arcaicos, ridiculamente obsoletos, mas apesar disso indestrutíveis. No vocabulário nazi que fala de “parasitas” e de “limpeza” há uma intuição intempestiva da natureza infecciosa da moralidade.»).
Quando Steiner procura explicar o fenómeno do anti-semitismo na Europa tem em atenção a figura do judeu que vem de Shylock, evidentemente, e os seus estereótipos banais (a usura, o deicida, o habitante do gueto, a cumplicidade da finança) — mas não basta. Razão porque fala numa dimensão teleológica do anti-semitismo e porque a sua investigação acaba por, muitas vezes, desembocar na investigação sobre o lugar do céu e do inferno na Europa (de todas as imagens do paraíso perdido, «a do Inferno [os judeus] é a mais fácil de recriar»). É isso que o leva a escrever que, contra todas as expectativas (as que foram criadas pela ilusão de que mais desenvolvimento equivale a mais humanização, a legenda do «longo Verão» da Europa entre 1880 e 1915 e, depois, a do renascimento europeu nos anos trinta), «a imagem da cultura do Ocidente [...] transformou-se ou num absurdo com laivos de racismo, ou numa peça de museu». Daí que — é este o ponto — «ao contrário do que acontecia nas fantasias das fábulas apocalípticas do século XIX, a barbárie irrompeu do coração da Europa». E mais: «Minada pelo tédio e pela estética da violência, uma considerável fracção da intelligentsia e das instituições da civilização europeia — as letras, as universidades, o mundo das artes — deram mais ou menos calorosamente as boas-vindas à instauração da inumanidade.» Essa inumanidade é a indiferença.
[A propósito: lembras-te das crónicas de Vítor Cunha Rego sobre o assunto? É curioso que tenha sido um inesperado cronista, cinzento até certo ponto, Francisco Sarsfield Cabral, que no teu jornal levantou recentemente esse assunto.]
Os meus receios sobre o anti-semitismo não têm a ver, unicamente, com as manifestações anti-judaicas, mas com a marca essencial da política comum europeia: a indiferença (a «terrível incapacidade de estupefacção», Steiner outra vez). O seu zénite na década passada foi a destruição da ponte de Mostar e do que ela significava para um mundo possível e para uma Europa vasta e acolhedora — perante a indiferença da opinião pública e de grande parte dos intelectuais. Interessa-me o anti-semitismo por várias razões (uma delas é, necessariamente, pessoal — e indiscutível, intransmissível até certo ponto); porque, em épocas de crise, desde o século XI, a reacção anti-semita é sempre uma solução mais fácil: é o bode expiatório. Não há maneira de a Europa resolver esse problema nem de enfrentar esse fantasma.
Por isso, quando mencionei o assassinato de dois estudantes judeus nas ruas de Paris no Verão passado, não os mencionei porque fossem judeus — mas porque a «indiferença» foi maior por serem judeus. Porque eles merecem castigo por qualquer coisa cometida noutro lugar do mundo? O que aconteceu quando o Guardian imprimiu na primeira página aquela fotografia de uma manifestação contra a guerra no Iraque onde uma rapariga segurava o cartaz «kill the jews»? E o que aconteceria se um cartaz dissesse «kill the muslims»? Não «kill the arabs», mas «kill the muslims». Quando mencionei as exposições anti-semitas numa universidade francesa não culpava o estado francês, que já tem entre mãos o problema do tchador como aspecto central da sua ética republicana — mencionava a maré negra que torna possível essa indiferença.
Finalmente, uma nota: este assunto não tem a ver com a distinção «esquerda»vs.«direita», tal como não permitirei que o anti-semitismo seja incluído na categoria «racismo» (a ideia da «raça judia», como ambos sabemos, tem assinatura; a do «problema judeu» também — não há raça judia nem problema judeu, ponto). Levantaram-se vozes dizendo «vêem, vêem, foi Cohn-Bendit que levantou o problema...», para dizer «foi a esquerda que chamou a atenção»; essa deslocação é inaceitável, como se pairasse sobre a esquerda uma acusação de anti-semitismo em sentido restrito (a sua matriz é a «questão judaica» de Marx, sim, e o resto do estalinismo), como se ser judeu implicasse um voto à direita. Esse absurdo, sim, é que é desrazoável.
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