dezembro 08, 2003

BOLSAS. Nos comentários, um pouco por todo o lado, sobre as bolsas de criação literária lêem-se coisas espantosas, infelizmente por parte de quem as defende de forma incondicional, como se fosse obrigação do Estado pagar os seus escritores. Não é. Nunca concorri a nenhuma delas e não recebi nenhum subsídio — mas não me incomoda que alguns escritores tenham obtido bolsas por um período determinado. Acho que fizeram bem. No geral, negoceio com o meu editor e isso basta-me. Mas é o meu caso e eu não gosto de juízos morais — e também não gosto desse processo de intenções que faz disto um caso político, até porque acho que, em circunstâncias ideais, o Estado não devia ter nada a ver com o domínio da criação — não gosto do Estado nem da galeria de comissários do gosto (sobretudo quando são vanguardistas, porque têm tendência para se tornarem pequenos ditadores), funcionários da «divisão de estética e metacrítica», pedagogos oficiais e ressentidos com poder. Sobretudo isso — não gosto do Estado nem do seu ressentimento. O desejo de ser pago pelo Estado assusta-me. É uma dependência medíocre. Mas, como escrevi, é uma opção pessoal.
Muita gente fala «dos escritores» como se aqueles que não vivem dos seus direitos de autor, ou seja, do seu trabalho como escritores, fossem herdeiros de fortunas familiares e tranquilizadoras, pagos por «internacionais do capital» ou felizardos que arranjaram dinheiro ao virar da esquina. Não: são pessoas que muitas vezes têm um emprego normal (ou banal, ou desinteressante, ou fascinante, ora bem ou mal pago), que escrevem porque isso é uma razão superior na sua vida (e dormem menos, e não gastam o que lhes apetece, e têm um tempo controlado de maneira diferente), que têm vida familiar ou não, que acreditam ou não no que fazem, que esperam um dia poder viver só do que escrevem e lutam por isso com alguma tenacidade. Alguns são professores, outros são bancários, outros são advogados, outros são funcionários do Estado, o que forem. Conheci muitos ao longo dos últimos vinte anos. Conheci bastantes. Vivem em Lisboa, no Porto ou na província — alguns mudaram-se para a província porque aí têm mais tempo e melhores condições financeiras (três deles acabaram de publicar os seus livros — que são bons, e vendem razoavelmente). Alguns aceitaram «a lei do mercado» — e sabem que não serão recompensados financeiramente no imediato, mas continuam a acreditar no seu trabalho —, outros participam dela — e escrevem romances populares, ou mais «vendáveis» (não acho um crime, não).
Passeando pela lista dos escritores realmente significativos (eu escrevi: significativos) dos últimos vinte anos — no estrangeiro —, vejo que nenhum deles teve uma bolsa para primeira obra. Nem para segunda. A maior parte nunca teve, aliás. E os melhores deles todos até são os que conheceram outro mundo para lá da literatura, desde enfermeiros que ganharam o Goncourt, até jardineiros que arrebataram o Booker Prize. (Em vez de — em Portugal — pedir apoio ao Estado, que tal melhorar as condições de retribuição por parte dos editores?) E acho que, por muito genial que um autor se julgue (daquilo que eu conheço, boa parte deles acha-se verdadeiramente injustiçado por ainda não ser venerado), se ao fim de vários livros não se consegue «viver da literatura», acho que é da mais elementar lei da modéstia, do bom-senso e da própria sanidade mental, que se viva de outra coisa para se poder continuar a escrever livremente, sem constrangimentos e sem ressentimentos.

1 Comments:

At 2:21 da tarde, Blogger ruhanism said...

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