dezembro 31, 2003

ESTRANGEIROS E EMIGRANTES. Vários estudos europeus têm dado conta de uma situação alarmante em relação ao nosso país. Eu tenho sérias dúvidas sobre a metodologia de alguns deles, mas reconheço que nem todos podem estar errados. Já não me comovem os estudos sobre a depressão nacional e sobre o estado de infelicidade que aparecem em algumas dessas sondagens europeias – fazem parte do chamado estilo português e são o resultado de duas décadas que, tendo sido prodigiosas em termos de transformações sociais, foram menos sérias em outros aspectos. O chamado défice (eu escrevo o chamado défice porque uma larga percentagem de portugueses desconhece do que se trata) é o resultado dessas duas décadas de asfalto, betão, fomento de uma indústria de corrupção e de subsídios, diminuição nos investimentos em ciência e educação, férias no Algarve e telemóveis ao desbarato. Isso tinha de ser pago. Estamos a pagar. É bom que não se esqueça.
Mas há um dado incómodo, ao qual os portugueses dão pouco relevo – mas que tem na sua base uma questão de carácter e uma matéria de sensibilidade geral. Tem a ver com as questões da emigração e com o racismo.
O ministro Paulo Portas acha que o império nunca foi racista, que o colonialismo português foi sempre benévolo e carinhoso. Trata-se de uma mistificação alarve e, em certa medida, criminosa. Criminosa porque, dita desta maneira, ignora parte essencial da nossa História, como se tivéssemos de esconder de nós próprios as chagas que transportámos; alarve porque tem objectivos políticos menores e banais, evidentes a olho nu. Sim, o nosso império era provinciano, a nossa crueldade foi relativa – se comparada com a brutalidade espanhola e o racismo anglófono. Mas nada nos autoriza a essa lavagem indigna do nosso passado. Nessa matéria – e como escrevi um livro com o título Lourenço Marques, em que defendi o direito de os portugueses assumirem a sua margem de felicidade africana – não deve haver preconceitos.
Mas o pormenor mais assustador tem a ver com os emigrantes que neste momento vivem em Portugal. As posições adoptadas pelo PP, nomeadamente, no que diz respeito à entrada de cidadãos estrangeiros e em matéria social e assistencial, parecem-me próprias do pior que há em nós, e que esses estudos europeus têm revelado: os portugueses têm escondido, lá no fundo, um pequeno pecado racista, e são os europeus menos receptivos a acolherem cidadãos emigrantes. Não é motivo de orgulho. Portugal, nessas duas décadas prodigiosas (retiro a expressão a António Barreto) utilizou a emigração como motor de desenvolvimento. Fez pontes e estádios com fundos europeus e emigrantes de Leste e de África. Nem sempre tratou bem esta gente. Se um dos partidos da coligação no governo se prepara para adoptar políticas de exclusão em relação à emigração e aos emigrantes, isso constitui – claramente – uma pulhice. Política e humanitária.
Portugal tem enriquecido o seu tecido social com essa presença de brasileiros, de gente de Leste, de africanos. Os brasileiros que estão em Portugal, ao contrário do velho racismo português, deram-nos lições de abnegação, de esforço, de criatividade e de alegria. Os emigrantes de Leste são uma das forças de trabalho qualitativamente mais honestas e sérias que temos entre nós. Os africanos, isolados e metidos em guetos em redor de Lisboa, são a memória desse racismo que não conseguimos controlar nem dirimir.
Ignorar essa gente, tratá-los como cidadãos de segunda categoria, diminuir os seus direitos, escondê-los, é vergonhoso. Não sou sensível ao discurso monótono da esquerda sobre o assunto, porque também acho que ser de esquerda não tem nada a ver com isso. Basta estar acordado.