janeiro 01, 2004

DESPEDIDAS EUROPEIAS. Antigamente, havia neve onde eu estava. Não esta, da serra turística, das promessas de casino. Neve mesmo, quinze dias de isolamento, botas, neve sobre as oliveiras, neve a rodear os outeiros, as colinas de carvalhos. Nunca soubemos esquiar nem sabíamos onde era Gstaad ou Axalp, mas havia neve de uma brancura rudimentar. Com a idade, essa neve vai-se transformando numa lembrança ridícula como quase todas. Lembrar aos outros uma coisa tão estranha como essa ameaça-nos mais do que a eles. Não tenho saudades da neve, de qualquer modo, nem do frio, nem dos quinze dias de isolamento, nem dos jornais que chegavam depois pelo correio, num pacote compensador. Sei que existia, que vinha todos os anos antes de chegar o aquecimento global, o fim de alguns picos de gelo na Antárctida, as correntes quentes, o descontrolo do clima. Chegava como as amendoeiras de Fevereiro e os patos de Barca d'Alva. Ao folhear livros, ao olhar para as lombadas das estantes, ao ver fotografias de Antuérpia e das ruas de empedrado, catálogos dos museus, reproduções de Rembrandt, vejo como essas imagens da neve são, também, parte das minhas despedidas europeias. Havia um filme de Bergman em que nevava sempre, não deixava de nevar; era uma neve limpa, sem ruas lamacentas nem sulcos de carruagens. Como uma moldura, essa neve entra em todas as lendas que repetem os seus lugares-comuns: o rosmaninho seco, as estevas, a urze, a flor violeta da urze, as casas de granito ou xisto, os ramos de carvalho, as varandas de madeira, rangendo. E os pássaros de Inverno (como no livro de Grimsley), os choupos à beira do rio.