janeiro 08, 2004

EXTRACTO. Esperava-se que o presidente da República fosse mais claro na sua comunicação em redor da questão das «cartas anónimas» que constam nesse processo — ou se mantivesse afastado do assunto. As duas soluções seriam igualmente defensáveis: o silêncio diante da acusação ou da calúnia sem assinatura (o que, na sua natureza profunda, se confunde), ou a clareza e rispidez de uma resposta directa. Ora, tudo aquilo que o presidente da República disse sobre o assunto, já tinha dito antes. O apelo à serenidade e à contenção, repetido até à exaustão, deixa de ter sentido. Gasto no meio do ruído, não se ouve. E a verdade é que, em substância, o presidente se limitou a apelar à contenção — e, por outro lado, a acusar um jornal de ter publicado uma notícia, o que não pode constituir crime. Ou seja, o presidente manteve-se no éter, moralizando «em geral» quando falava de um tema «concreto». Compreende-se o cuidado, mas devia ter sido mais claro, até para sabermos realmente a sua opinião. Está em causa um processo complexo; a forma sórdida como o assunto é muitas vezes tratado, desfazendo-se ou refazando-se em redor de suspeitas e de informações que ninguém pode confirmar, também não ajuda; a própria imprensa está dividida nas suas opções que não são apenas «editoriais» mas que a leva, frequentemente, a tomar partido ora nas entrelinhas ou nos títulos. A questão das «cartas anónimas», que tem chocado muita gente pelos motivos mais desencontrados, não sendo central no processo (nem na investigação), revela alguma coisa dele e da forma como tem sido tratado junto da opinião pública. É um hábito português: a acusação anónima, a coisa torpe, a vigilância «do povo”, a suspeita «sobre uma lista de nomes», a espionagem dos vizinhos. Vem desde antes da Inquisição, mas a Inquisição aumentou consideravelmente o seu alcance e o seu poder. Este anonimato das acusações que enviou milhares para a tortura, para as fogueiras, para o degredo e para o esquecimento, não é muito diferente, no entanto, de todas as «fontes anónimas» de que a imprensa muitas vezes se serve, mesmo com a sensação nítida de «estar a servir» – sacrificando quem for preciso. O retrato dessa esquizofrenia vem nas primeiras páginas. O país revela aquela face mais obtusa do seu carácter, que nem sequer é risível, através da forma como se alimenta desta corrente de rumores e de insinuações, da pequena perseguição e do riso alarve. O país da suspeita e das cartas anónimas está, mais uma vez, a levar a melhor. Não poderia o presidente, por exemplo, ter dito que isso é um crime? [JN]