POIS TU FOSTE ESTRANGEIRO. Em 1975, a xenofobia nacional, herdada do salazarismo e do que o antecedeu (o provincianismo pacóvio e a Inquisição), foi mais uma vez posta à prova diante da chegada de meio milhão de portugueses vindos das antigas colónias. Deserdados e hostilizados pelo poder político-militar da época, que lhes desaprovava a biografia e as ideias, os retornados mudaram Portugal em poucos anos: evitaram que a província desaparecesse da forma abrupta, transportando consigo criatividade, energia e vontade de vencer; contribuiram para mudar os hábitos e os costumes de um país medíocre cheio de moralistas pálidos e machistas. Fizeram-no contando também com a hostilidade do cidadão comum, que os considerava portugueses de segunda. Eles, sim, os herdeiros legítimos de Afonso Henriques, eram os «portugueses». Desaprovando largamente a vinda de pretos e de emigrantes de Leste, sem falar dos brasileiros, os «portugueses» viveram os anos oitenta e noventa à sombra de muito do que os estrangeiros fizeram por eles – das auto-estradas à Expo98. Os «portugueses» não se incomodaram com o facto de milhares de trabalhadores africanos viverem em condições degradantes nos estaleiros do Alqueva, no lamaçal da Expo e nas encostas da Venda Nova. Apreciavam, até, o ponto de vista «étnico», com os bares caboverdianos e as discotecas angolanas, ou o serviço doméstico barato – mas nunca prestaram atenção (salvo quando eram atingidos) à espiral de violência que tomava conta dos subúrbios e lhes destruía os comboios de Sintra. Daí, passaram a olhar de viés os brasileiros: entre eles, os dentistas (que vieram tornar mais acessível o mercado) e os empregados de lojas e restaurantes (que atendiam melhor). Depois, vieram os emigrantes de Leste, que – mesmo sujeitos às mafias criminosas que andavam à solta pelo País – pela sua competência conquistaram lugares na construção civil, no serviço doméstico e na pequena indústria (muitos deles com qualificação superior). Isso está tudo muito bem, mas os «portugueses» também acham que eles lhes tiram o lugar (até há enfermeiros espanhóis, imagine-se), que eles acabam por subir na vida, por comprar casa e assentar família. Que eles, um dia, podem votar. Que os filhos deles, um dia, podem ir parar à administração pública, às universidades. Que um dia eles – que «vieram com uma mão à frente, outra atrás», como manda dizer a tradição – vão criar empresas e enriquecer. Esse cenário é inaceitável para os «portugueses». Que os estrangeiros e emigrantes estejam entre nós, é uma coisa (podem viver nos estaleiros, apanhar o autocarro das cinco da manhã, os seus filhos tratados pelas misericórdias e organismos de «inserção social», podem as mulheres viver aprisionadas em bordéis de «empresários da noite» pela província fora, podem correr para as filas de legalização durante a madrugada). Inteiramente diferente é que façam disto a sua terra; «eles» não passam de brasileiros, caboverdianos, russos, ucranianos, moldavos ou marroquinos e paquistaneses. Este ano podem entrar 6.500. Os cavalheiros da indústria já vieram dizer que é pouco. O governo mantém que basta. Se forem precisos mais (a expressão é chocante, não é?), já se sabe: entram ilegalmente. Sempre podem viver nos estaleiros, embebedar-se com vodca de Sacavém e com o tempo há-de ver-se. Não pensem é que podem ser «portugueses». [JN]
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
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