janeiro 03, 2004

SINCERAMENTE. Uma pessoa acorda, passa os olhos pelos jornais, ouve o noticiário do meio-dia, assiste à abertura dos telejornais da uma — e duvida seriamente da sanidade mental do país. Nada de escândalos, amiguinho. Nada de te escandalizares. Hoje, então, devias estar longe disto, mas não consegues. Lamaçal, lodaçal, pântano, vêm à memória estas palavras, mas é só um prenúncio do que há-de vir. Espantoso país das cartas anónimas, das vingançazinhas, da suspeita, do medo de pôr o nome por baixo, hoje devias não pensar nisso mas não consegues. Há uma espécie de náusea no ar. Belo ano. Excluis os pontos de exclamação por vício, para não te associares à gritaria, mas não consegues: volta atrás e corrige, corta os pontos de exclamação. Ris da ingenuidade absoluta, da credulidade total. Ah, o ministério público falhou. Ah, está a investigação toda de rastos. País das ruas. País da praça pública. Vem nas crónicas, lembram-se?, de quando diziam «corram ao Paço que matam o Mestre», e vai lá toda a gente, e o Mestre estava de boa saúde, a multidão acreditou em tudo. Acredita em tudo. E há denúncias anónimas. Manigâncias. Alguém deixa cair uma informação, mas não tem rosto. O melhor de tudo é ver como tudo encaixa, como tudo estava escrito nas instruções para compor este puzzle perfeito em que tudo se baralha para que tudo continue na mesma, esquerda e direita, tudo amiguinhos, maravilhoso bloco central. A humilhação maior é ver como as cartas anónimas figuram nas páginas do processo, claro, mas isso é vício nacional: um país que tem tantas cartas anónimas na sua história merece isto. Cartinhas de denúncia, cartinhas de humilhação: mencione-se um nome para que o nome fique coberto de lama. Diga-se um nome, um nome qualquer no meio de uma conversinha sobre a lama, e a lama arrebatará todos os nomes à volta. País assim. País perfeito. País sem culpados. A estratégia está a funcionar na perfeição, de resto: corram ao paço, que matam o Mestre, e a multidão corre ignorando que o Mestre está de boa saúde. Para que se há-de fazer justiça? Melhor que tudo fique contente, de um lado e de outro. Melhor que tudo fique assim. A estratégia está a resultar. E tanta gente escandalizada, ignorando que o escândalo, escandalizar-se assim alguém, é meio caminho para que não se mencione mais o assunto. País sensível, de plástico, cheio de merda pelos cantos. Tudo está a resultar. A aranha na sua teia. Perfeito.