SÃO PAULO. São Paulo é o demónio dos que gostam do Brasil. A cidade desmente todo «o amor ao Brasil»; na sua constelação de cimento e de vidro, de viadutos e de favelas, de bairros e de zonas, São Paulo é a imagem inimiga de quem vê o Brasil como o paraíso para forasteiros, praias douradas, povo dócil, aromas fortes, perfumes, bossa nova e tudo o que aprendemos sobre ele no nosso longo contacto (contato?) com imagens-feitas. Nelson Rodrigues falava (o texto vem recolhido em O Remador de Ben-Hur de um amigo que, de súbito, deixou um cliente no escritório e partiu de carro para o Rio, a fim de ver o horizonte a partir da Avenida Atlântica. Esse lado de São Paulo como cemitério de horizontes existe desde o primeiro minuto do entardecer, com prédios transformados em heliportos, ruas escorrendo luzes, o centro despovoando; mas é também o primeiro minuto do renascimento da velha São Paulo dos bairros. A visão é romântica, sim, mas gosto desses bairros, dos becos «poloneses», das mesas dos restaurantes italianos nos passeios, dos relvados, das livrarias abertas, dos restaurantes no vigésimo piso (nunca lá fui, a esses, mas imagino), dos candeeiros do Bairro Liberdade, das praças onde há árvores sobreviventes. Pouco resta do paulistano original; séculos de história, de massacres, desafios (bastantes, contra o Rio e o Estado), aventuras, invenções (da arte moderna à acumulação de riqueza), fizeram da cidade tudo aquilo que nós quisermos falar dela e dos seus 450 anos. Não se pode gostar despudoradamente de São Paulo (há sempre aquele senão brutal que nos encosta à violência, ao subúrbio, à pobreza); não se pode detestar ingenuamente São Paulo, ignorando o seu ruído vivo e as várias cidades que lá moram: a portuguesa, a árabe, a italiana, a judaica, a japonesa. E as coisas de que também gosto: os «sebos» (alfarrabistas), uma certa sisudez que faz bem de vez em quando, a Paulista, o Arouche, Sampa, as salas vazias da USP à noite, aqueles que não gostam de São Paulo, aqueles que gostam de São Paulo. [Por brincadeira devia dizer-se também: «E gosto muito da ponte aérea para o Rio, sim.» E citar-se Vinicius: «Sim, São Paulo... a gente começa a andar, a andar, e nunca mais chega a Copacabana..»]
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home