fevereiro 20, 2004

CHINA, 2. [Actualizado, sábado 17:51] O Paulo Gorjão comenta o meu texto sobre a China & Guterres e invoca o princípio da realidade para me chamar à razão em matéria de política internacional; a hipocrisia faz parte do jogo. Concerteza; diz o Paulo: «Na política internacional, tal como na vida, as questões não são preto e branco. O mais provável é que hajam inúmeros tons de cinzento. Por muito que isso nos custe e não nos orgulhe particularmente.» Ora aí está. Não nos orgulha particularmente, de facto, mas a realpolitik faz parte do nosso dicionário e da nossa memória. Até aí tudo bem. A questão está, no entanto, num pequeno pormenor: nem todos nós somos diplomatas ou especialistas em estratégia; muitas vezes limitamo-nos a ter opinião em função da nossa memória do século recente e daquilo que ele ensinou em matéria de pactos, convergências, conflitos, máscaras. Nesse aspecto, a nossa memória do século não é particularmente festiva; algumas indignidades, estamos agora a descobri-las; alguns silêncios pagam-se caro mais tarde. Fazia parte da realpolitik, durante os anos da guerra fria, manter um discreto silêncio a seguir à ocupação da Checoslováquia, ou ignorar a natureza do regime militar argentino? Eu sei que os contextos são diferentes, que as circunstâncias exigem respostas diferentes, mas a China exigiu sempre respostas diferentes desde os anos sessenta (até porque a China faz o que bem entende), e os mortos são os mesmos. Ah, não peço uma invasão da China. Peço uma condenação clara; coisa simples. Lamentei que se realizassem lá os Jogos Olímpicos só para satisfazer a necessidade de fundos do COI na época Samaranch; coisa simples. Peço que se inventariem os números das sucessivas barbáries e que «a comunidade internacional» interrompa os negócios durante uns minutos para estudar a questão do Tibete. Pedi o mesmo noutras circunstâncias e em relação a outras frentes.
A lengalenga sobre a «nova ordem internacional» e «os desafios da globalização», dou de barato; toda a gente lhe é indiferente porque se repete sempre com a mesma intensidade e a mesma falta de senso. Já me parece inteiramente outra coisa que a IS, que Guterres representava em Pequim, permita que a China se sirva das declarações sobre «convergência de opinião» em matéria de Nações Unidas, Conselho de Segurança, para impedir que a comunidade internacional (ou as próprias Nações Unidas) aprecie as violações de direitos humanos e as prisões políticas na China. Terei todo o gosto em apreciar a condenação dessas violações de direitos humanos pela boca de António Guterres, como sei que ele faria, evidentemente. Nunca isso esteve em questão.
Recordo, aliás, um episódio, que me foi lembrado por um amigo moçambicano — J. —, em idêntica ida de Guterres a Moçambique enquanto presidente da IS. Escreve o meu correspondente por email: «A reunião da IS coincidiu exactamente com um momento único na história moçambicana pós-guerra. A propósito de uma tentativa do governo em desarmar a pequena guarda de Dhlakama, perfeitamente extemporânea, a Renamo convocou manifestações de repúdio em várias cidades e vilas. Pediu autorização para tal, como manda a lei. No dia das manifestações a polícia abriu fogo em várias cidades (11?) e noutras carregou. Morreram algumas dezenas de pessoas. Outras foram presas — os 80 mortos na cadeia de Montepuez foram alguns desses presos. […] O facto de ter sido aberto fogo em tanto sítio diferente indica ordens superiores e não um mero incidente localizado. No dia dos disparos, a IS estava reunida em Maputo.» Eu não teria pedido a Guterres que, de Maputo, comentasse os «incidentes» ou reagisse. Mas, sabendo nós «como essas coisas [com a imprensa] se fazem», como foi possível que nenhum delegado da IS tivesse contado a história? Sei o que Guterres e a IS pensam sobre essa chacina; nunca isso esteve em causa. Dir-me-á o Paulo que a IS estava comprometida e tinha de manter o seu silêncio. É o que me incomoda na «questão chinesa».