CHINA. O ex-primeiro-ministro António Guterres foi à China avistar-se com os líderes do partido comunista local e declarou haver convergência «muito relevante», ou «larga convergência» em relação «aos desafios da globalização» e à reforma das Nações Unidas.
A questão chinesa é, de facto, relevante. Não pode deixar-se de lado, em qualquer discussão sobre o equilíbrio ou o desequilíbrio do mundo actual, a «questão chinesa». Ora, há aqui dois modos de ler a «questão chinesa» neste contexto. Para o capitalismo, ela significa, necessariamente, a existência de um mercado de milhões de consumidores. Esse é o dado mais relevante, que passa por cima de minudências ideológicas e de vulgares atropelos aos direitos humanos. É evidente que essas minudências ideológicas e esses atropelos aos direitos humanos (que incluem prisioneiros políticos a viverem em condições desumanas, massacres de populações inteiras nas províncias, ocupação ilegal do Tibete, fuzilamentos arbitrários e sumários de cidadãos, controle da internet, etc., etc. – um longo etc., aliás) deviam fazer parte das nossas preocupações. Sobre isso, Hu Jintao, secretário-geral do PCC, assegurou a António Guterres que a China «colocará de lado as questões ideológicas»; como se supunha. Quando Jiang Zemin esteve em Portugal, em visita de Estado – e o dr. Almeida Santos lhe cantou fados de Coimbra –, essas questões já se colocavam, mas não sei se Guterres manifestou ao governo da China as mesmas inquietações que já se lhe conhecem (inteiramente justificadas, aliás) sobre os prisioneiros de Guantánamo, detidos ilegalmente, pelos EUA.
No meio das hipocrisias estratégicas que alimentam os ressentimentos de esquerda e de direita hoje em dia, nenhum combate é mais justificado do que o combate pela liberdade e pelos direitos humanos. Periodicamente, alguns intelectuais e líderes políticos manifestam a sua compreensão pela existência de regimes totalitários e de prisões políticas. Não vejo razão para que Nadine Gordimer, prémio Nobel da Literatura, por exemplo, tenha dito que os princípios de justiça e de direitos humanos não se podiam aplicar a Cuba, pelo facto de ser um pequeno país onde há pobreza. Geralmente, essas declarações de apoio às prisões políticas ou aos fuzilamentos de Cuba, vêm de intelectuais que vivem em regimes democráticos, onde existem liberdade de imprensa, eleições, direitos de autor e liberdade de movimentos.
Nessa matéria, esquerda e direita têm as mãos sujas. Em alguns casos, é difícil livrarem-se dessa sujidade, razão pela qual a invocação de «princípios» e «valores», em matéria de geopolítica mundial, seja cada vez mais problemática. Nesse universo quase nunca existiram princípios nem valores, como aliás se sabe.
Causa no entanto apreensão que António Guterres tenha declarado, em nome da Internacional Socialista, existir convergência com a China em matéria de «desafios da globalização», a menos que o discurso sobre a globalização possa ter dois cenários diferentes: dentro das fronteiras chinesas e, claro, na Europa ou nos Estados Unidos da América. Como se os «desafios da globalização» permitissem, na China (que tem cerca de um terço da população mundial) «pôr de lado» questões ideológicas tão fundamentais como os direitos humanos ou a liberdade. Sobre isso, convém dizer, a China tem uma larga tradição. Sempre pôs de lado os direitos humanos e a liberdade. Estão nas prisões ou debaixo de terra. Ou nem isso.
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