fevereiro 21, 2004

EMANUEL FÉLIX, 2. Nem sempre temos os livros à mão nos momentos certos, mas andava à procura deste poema de Emanuel Féix há uma semana exacta. Descubro-o agora. O Eugénio Lisboa, veio fascinado por ele depois de uma visita aos Açores, e deu-mo a ler pela primeira vez (é de Habitação das Chuvas, de 1997):

«Como eu amei as raparigas lá de casa/ discretas fabricantes da penumbra/ guardavam o meu sono como se guardassem/ o meu sonho/ repetiam comigo as primeiras palavras/ como se repetissem os meus versos/ povoavam o silêncio da casa/ anulando o chão os pés as portas por onde/ saíam/ deixando sempre um rastro de hortelã/ traziam a manhã/ cada manhã/ o cheiro do pão fresco da humidade da terra/ do leite acabado de/ ordenhar// (se voltassem a passar todas juntas agora/ veríeis como ficava no ar o odor/ doce e materno/ das manadas quando passam)/ aproximavam-se as raparigas lá de casa/ e eu escutava a inquieta maresia/ dos seus corpos/ umas vezes duros e frios como seixos/ outras vezes tépidos como o interior dos frutos/ no Outono/ penteavam-me/ e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas/ na primavera/ não me lembro da cor dos olhos quando olhava/ os olhos das raparigas lá de casa/ mas sei que era neles que se acendia/ o sol/ ou se agitava a superfície dos lagos/ do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas/ as raparigas lá de casa/ que tinham namorados e com eles/ traíam/ a nossa indefinível cumplicidade/ eu perdoava sempre e ainda agora perdoo/ às raparigas lá de casa/ porque sabia e sei que apenas o faziam/ por ser esse o lado mau/ de sua inexplicável bondade/ o vício da virtude da sua imensa ternura/ da ternura inefável do meu primeiro amor/ do meu amor pelas raparigas lá de casa.»