fevereiro 27, 2004

GIBSON, 2. Carlos Pereira da Cruz escreve, por mail, sobre estas mesmas questões: «Ainda não vi o filme de Mel Gibson; do que já o vi relevo uma constante: a violência. […] Para os romanos a crucificação de Jesus não foi nada de especial, foi “business as usual”: a crucificação era uma pena comum no Império Romano, a menos que os romanos que em particular crucificaram Jesus fossem sádicos. […] Não creio que tenham tratado Jesus nem melhor nem pior. Carl Sagan detestava filmes de ficção científica porque não se conseguia abstrair dos erros que observava nesses filmes (por exemplo: uma explosão no espaço não emite som, dado que não existem partículas que vibrem com a libertação de energia). Também tenho cada vez menos pachorra para os filmes sobre a vida de Cristo. Esses filmes normalmente são feitos com base num dos Evangelhos, e seguem os Evangelhos à letra. Tantos milhões de dólares gastos, e nunca ninguém disse aos realizadores que os Evangelhos não são um relato histórico. […] Ao longo de todo o texto do Evangelho, ou Deus, ou os demónios dizem “Tu és o Filho de Deus”; o primeiro e único humano a dizer estas palavras foi um oficial do exército romano. Que conveniente. Eram os romanos das primeiras conversões que diziam nas suas orações que Jesus era o Filho de Deus. Por exemplo, no Evangelho de S. João, aquando da ressurreição de Lázaro, Jesus diz “Eu sou a ressurreição e a vida.” Na verdade, é a comunidade joanina reunida que, orando, ao ler o texto, diz que Jesus é a ressurreição e a vida. A minha visão de Jesus aponta para um homem muito menos pomposo que o ilustrado neste Evangelho. Por exemplo, no Evangelho de S. Mateus, escrito para judeus da seita que seguia Jesus, podemos encontrar uma passagem em que Jesus diz que vem trazer a divisão, semear a discórdia, separar irmão de irmão, pai de filho. Porquê? Os seguidores de Jesus eram uma de muitas seitas judaicas, que cerca do ano 70 da nossa era foram postas perante um dilema: ou deixavam os ensinamentos de Jesus, ou deixavam de ser considerados judeus. Sou tentado a acreditar que a verdadeira razão deste ultimato não eram os ensinamentos de Jesus de per si, mas o facto de a seita que seguia Jesus aceitar no seu seio antigos pagãos e não obrigá-los a seguir práticas básicas do judaísmo. Perante este ultimato, a tentação de voltar ao seio da grande corrente judaica era atraente, daí a exortação escrita acima. Isto leva-me a outros pensamentos curiosos. Os judeus do Antigo Testamento não creio que fossem monoteístas; ou seja, eles acreditavam no seu Deus, mas não como o único Deus. Sim como o Deus mais poderoso de todos. Julgo que só ao longo dos séculos foi amadurecendo a ideia do monoteísmo, um único Deus para todos os povos. Muita da discussão resulta de em boa verdade pouca gente saber que existe uma coisa chamada exegese cristã, de pouca gente ser ensinada a pensar a fé, muita gente ser ensinada a repetir fórmulas e repetir rituais.»