março 03, 2004

BLOGOALMA. Eu não sofro com estados de alma. E, já que se trata de falar disso, nunca na blogosfera; o «intimismo» não significa «demasiada intimidade». Escrevo, simplesmente, sobre o que me apetece – e até onde me parece que vão os meus limites; é sempre matéria pessoal. Disse-o sempre, desde o princípio. Não estou para fazer audiências nem para evangelizar. Nada de especial, de resto; esta posição é comum à maioria dos blogs e é essa uma das qualidades da blogosfera. Alguns blogs comentaram a minha citação sobre o «patrulhamento ideológico» (utilizo a expressão brasileira, que nasceu durante a ditadura, quando a linguagem era mais do que vigiada e as frases mereciam punição; se quiserem voltaremos a ela); dos comentários mais «negativos» escolho apenas responder ao Cruzes Canhoto, em atenção ao seu próprio blog, uma das minhas leituras permanentes. Diz o J: «É certo que a alguns, que antes louvavam a massa crítica e o debate, convém agora falar de "acidez" e "patrulhamento ideológico" porque, simplesmente, esse mesmo debate e massa crítica já não lhes convêm.» Evidentemente que a evocação da «acidez» se refere ao J. Pacheco Pereira; a ideia do «patrulhamento ideológico», sim, tem a ver comigo. Ora bem. Se eu me lembro, desde os primeiros debates sobre «a condição da blogosfera», no Verão passado, se algum blog (não isoladamente, claro, mas em boa companhia) esteve tão marcadamente nas tintas, e o escreveu, para a «agenda», o «estatuto editorial», o «alinhamento», o «meter na ordem», o «controle», foi o Aviz. Ponto um. Meu caro: qualquer debate e qualquer «massa crítica» me convêm, agora e em qualquer estação do ano. Nessa, como em outras matérias, qualquer regra é um estorvo escusado; acredito muito mais na tolerância do que em qualquer outra coisa. Portanto, não me convém agora falar de «patrulhamento ideológico»; sempre falei; e sempre houve – depende dos interesses, das inclinações e dos combates que cada um quer travar. Eu não estou para travar nenhum combate; lamento. Escrevo. Só estou a escrever com inteira liberdade, defendendo liberdade absoluta para que toda a gente escreva. Não tenho jeito para mandarim. Há espaço para eles, sim, tanto quanto para os blogs que se limitam a existir, escrevendo sobre o que lhes apetece ou para aqueles que acham que está a nascer uma coisa absolutamente nova e se mostram mais empenhados a reivindicá-lo. Nessa medida, sim, acho que eles são um contrapoder, como escreve o Cruzes Canhoto. Mas a sua verdadeira legitimidade (para citar um dos termos usados no texto do J) é essa: existirem, serem visitados, serem uma espécie de «leitura subterrânea» que os média muitas vezes fazem de conta que não existe. A sua legitimidade ou o seu ar de contrapoder não lhes chega pelo facto de tratarem ou de seguirem a agenda das notícias, embora esse também seja um aspecto importante. Sinceramente, pela parte que me toca (é essa a minha opinião, absolutamente discutível), aprecio nos blogs é o facto de terem mudado a agenda banal das nossas leituras diárias, ou de, pelo menos, lhe terem sonegado o seu ar de totalidade, de absoluto, como se fora dessa agenda não existisse mais nada. Principalmente quando foram os blogs que revelaram que, ao lado do mundo dos bonzos, dos empertigados e dos mandarins (da imprensa e da política, o mais visível), havia portugueses inteligentes, cultos, que sabiam escrever bem, que discutiam com elegância e com liberdade. E que a política – a política propriamente dita – não era apenas coisa de quem quer ser deputado, director-geral, «jota» em promoção, vereador ou candidato a presidente. Sinceramente, se houve algum universo onde a política também se fez de ideias (generosas ou não, sérias ou não), foi nos blogs. E sem repetir piadas estafadas e rápidas (ou alarves) sobre as gaffes da cavalheirada dos conselhos nacionais dos partidos.
De resto, acredito nesse mercado invisível, que é a sobrevivência dentro da blogosfera. Não tenho, sobre isso, estados de alma, sobre se o blog acaba ou continua, se acelera ou desacelera. E também não me incomoda que outros a manifestem. Anarquia total nessa matéria, sim; é barato e produtivo. E se algum dia decidir terminar a vida do Aviz – por achar que não estou para isto, ou porque não tenho tempo, ou porque decidi ser treinador do Fluminense ou do Vitória Bahia – acabo mesmo, e sem dramas, tragédias ou estados de alma. Porque acabou. Porque não estou a travar nenhum combate. A minha vida, hoje em dia, também depende do blog, sim (faz parte dela; e uma parte dela faz parte do blog, talvez), mas depende também de outras coisas, mais importantes ou menos importantes; é uma coisa entre mim e a minha vida. Por isso, cada um escolhe os seus caminhos, caro J. Sabe porque é que eu falava de «surdez», outro dia (e lamento se não foi explícito)? Porque, fundamentalmente, ninguém aprende a falar sem aprender a ouvir. Quem tem todas as certezas e o mundo muito arrumadinho, dividido entre «o que é bom (ou permitido, ou festejável)» e «o que é mau (ou interdito, ou a punir)», não costuma ouvir o outro lado. E, nesse caso, faz patrulha, sim: põe-se a vigiar os deslizes dos outros (e a reconstituir cada contradição, a criar «eixos do mal» e «eixos do bem»). Sobretudo os seus deslizes ideológicos. Admito que se fica muito mais satisfeito nesse quadro, claro; mas perdem-se vozes que dizem coisas, sobretudo vozes desconhecidas, que são geralmente as mais importantes.