março 12, 2004

ESPANHA, 3. Nos últimos dias tenho lido ao acaso alguns dos ensaios de Daniel J. Boorstin e ontem foi a vez de O Nariz de Cleópatra, um dos seus livros (injustamente) menos lidos. A ideia central resume-se numa frase: «Se Cleópatra não tivesse aquele nariz, certamente que a história da Humanidade seria diferente.» Há consequências naturais a tirar deste princípio, que Boorstin enquadra na tipologia dos «descobrimentos negativos»; o primeiro exemplo que dá é o de Thomas Cook, que se distinguiu sobretudo por provar que não existia nenhum continente espantoso (e rico, e imenso) entre a Antárctida e o Sueste Asiático. Há uma série de descobertas negativas que salvaram a nossa ideia do mundo; e que assassinaram velharias assentes sobretudo na fé e na autoridade eclesiástica (de Copérnico em diante, há uma série delas).
Depois de ver os blogs de hoje e de acrescentar as leituras das opiniões dos políticos cheios de fé, de ontem, vejo que há uma tentação de fazer moral negativa: não foi a ETA, não foi a al-Qaeda, não foi o que tu dizes que foi. A moral negativa, como todo o tipo de juízos assentes na fé política (que é menos perversa do que a fé religiosa, mas muito mais ridícula), produz dislates evidentes, sobretudo se hoje lermos o que se disse ontem, no calor da não-reivindicação do crime (ver, a propósito um dos posts do Klepsydra que, com a sua ponderação, acerta como é habitual). A tentação moral, aliás, produz coisas destas: analistas portugueses tentando acreditar que a autoria foi da al-Qaeda para que isso atinja mais o governo espanhol. Só assim se compreende que certas luminárias tenham avançado desde logo para a tese da culpa americana, que hoje está em saldo e com grande aceitação no eleitorado. No dia 12 de Setembro, um dia depois do ataque ao WTC, o fórum TSF deu voz a esse sentimento (não foi preciso esperar pelo Afeganistão e pelo Iraque) de má-fé: eles tiveram o que mereciam. Esse tom é aceitável em guerrilha, mas ofusca o raciocínio, evidentemente; essa lógica leva a que atentados como os de ontem sejam desculpabilizados e justificados (ou lidos como justificáveis), sobretudo se tiverem alguma coisa a ver com a al-Qaeda. Entramos, assim, no universo da tal elocubração adversativa: sim, o atentado é criminoso, mas não é senão uma resposta; sim, devemos condenar o atentado, mas temos de compreendê-lo «no contexto do confronto». Ora, essa lógica não tem contradição possível hoje em dia, de tal modo é aceite, divulgada, autorizada. O relativismo entrou no discurso das multidões; é como uma espécie de marca de credibilidade para o common-sense.

Três notas mais: 1) a simpatia pelo «nacionalismo basco» provoca sempre delírios que transformam os operacionais da ETA em «heróis do povo»; ontem, ouvi falar de Garmendía e Otaegui (os últimos fuzilados de Franco) para justificar o combate da ETA. 2) sobre a «hipótese al-Qaeda», o correspondente da SIC nos EUA chamou a atenção para um dos argumentos desse common-sense: que tinha a Europa de se meter onde não era chamada?

[Há, evidentemente, dois momentos nestas reacções: o horror, humano e compreensível; a comoção diante do crime, a compaixão diante das vítimas inocentes, a indignação diante dos ferros retorcidos, da poeira, das manchas de sangue. Quem já visitou cenários desses, logo a seguir a um atentado, compreende melhor o que significa a a ausência de razão e a falha absoluta do conceito de verdade (William James dizia que o «verdadeiro» é só um «expediente na nossa maneira de pensar»). E, depois, o segundo momento: continuar tudo independentemente da verdade absoluta transfigurada naqueles ferros retorcidos.]