março 21, 2004

GISBON, 2. Só mesmo para encerrar, e definitivamente. Em relação ao minúsculo texto anterior sobre Gibson (de que mantenho tudo; e basta ler a crónica que citei para se perceber de que miséria se tratava), e sobre a frase final, o sempre atento Filipe N. V. pergunta-me qual das três hipóteses eu subscrevo: «1) Quem tiver gostado do filme é um adicto a sangue e miséria? 2) Ou um antisemita incurável? 3) Ou apenas alguém com quem você não partilha os seus gostos cinematográficos?»
Rapidamente: o ponto 2), confesso, não tem sentido a não ser para aqueles que dependem de qualquer teologia negativa, e as ideias de Gibson nesse aspecto não são propriamente credíveis ou, sequer, ideias; o filme está cheio de insinuações que não passam de erros históricos (a utilização do aramaico, a destruição do segundo Templo, etc.) e de trapalhadas afins -- não é problema meu; o antisemitismo popularucho, que é geralmente invocado entre nós, é tão banal que só se confunde com a doença, a deformação mental e a má-fé; o filme continua uma lógica conhecida da tradição cultural ultra-conservadora católica de que já tivemos o suficiente no século XVI; não alinho em «cruzadas» de qualquer natureza, nem contra Godard, nem contra Scorcese, nem contra Gibson -- limito-me, em relação ao filme, a mudar de lugar e a não insultar as opiniões dos outros, embora a má-fé e a ignorância andem sempre de mãos dadas; finalmente, não acho bom esgotar a palavra «antisemitismo» desvalorizando aquilo que nela se mantém essencial. Sobre o ponto 1), não se trata de sangue, mas da exaltação através do sangue e da invocação do sofrimento; acho que existe, aí, uma questão fundamental, que nem sequer é «teológica», mas que -- talvez exagerando -- coloca Santo Agostinho de um lado e Montaigne do outro (não é por acaso que se fala na conversão de Gibson como um momento traumático): Agostinho invoca o sofrimento e as suas etapas antes de entrar «no domínio da verdade», Montaigne fala do que é (sim, de facto talvez devêssemos ler mais Montaigne). Sobre o ponto 3), de facto, não vejo grande diferença entre o filme de Gibson e as versões zefirellianas ou anteriores; tem mais efeitos especiais, mas aí eu prefiro o Terminator 2, sim, e definitivamente. E de Gibson as sequências do Arma Mortífera. Enfim, não é filme que me interesse.