março 22, 2004

MARIA JOÃO PIRES. [Maria João Pires em entrevista ao El Pais; em causa, o projecto de Belgais e a falta de apoio e de palavra de Estado e privados.] A questão básica, se me permitem -- amigos de esquerda e de direita --, é que Belgais não é uma peça de teatro no Bairro Alto nem um grupo «de vanguarda» que choraminga porque o Estado não cedeu à sua chantagem habitual para produzir mais um fait divers. Belgais é uma escola, um centro de investigação musical, um auditório para que músicos realmente importantes se encontrem, trabalhem e produzam música, que é um bem inestimável num país de merda que tem tagarelas à altura mas que é ignorante em matéria musical. Não se trata de «um espaço» inútil: ali, aprende-se música, conservam-se partituras, e ensina-se. Num país que ignora brutalmente as artes sérias e as ciências importantes, eu defendo que se deve apoiar Belgais. Porque cada caso é um caso, independentemente do que se possa pensar sobre a política geral de atribuição de subsídios à cultura, nível em que Belgais se salienta pela atenção que dá à formação. Maria João Pires, de facto, não precisa de Belgais nem da burocracia ou das promessas portuguesas, pode viver onde lhe apetece, mas achou que podia fixar-se em Castelo Branco e que poderia investir parte do que é seu numa obra daquela importância.
O protesto de Maria João Pires não é contra o Estado nem contra o governo apenas. É contra o país -- e isso compreende-se muito bem. O país do Euro 2004 e dos «desfiles de moda» subsidiados pelo Estado e pelas câmaras municipais, o das empresas que não cumprem as suas promessas, o dos ricos que ignoram a existência de uma responsabilidade social do dinheiro.
Eu, pessoalmente, estou-me nas tintas para as posições políticas de Maria João Pires e para a sua presença nas manifestações em que entendeu estar presente (e eu não estive, nem estarei), ou para essa contabilização de ressentimentos, que neste caso vêm da direita -- e que no caso de Vasco Graça Moura ou de Fernando Gil vieram da esquerda. Maria João Pires é, se acreditarmos que as pessoas têm uma nacionalidade à nascença, um nome português de que nos devemos orgulhar: pelo seu talento, pelo seu piano, e por Belgais, que pode ser visitado e vivido. Milhares (repito: milhares) de idiotas e de pseudo-talentos viveram, na cultura, à conta do Estado. Ou porque querem escrever e «ter ideias» com o chapéu protector do Estado ou defender qualquer outra urgência liminar em nome do seu génio ainda a provar. O génio de Maria João Pires não precisa de ser provado: está aí. Os fundos que pediu, que negociou, que viu serem atribuídos em contrato a Belgais, são uma «parceria» para um trabalho notável. Não existem para ela gravar Schumann, Chopin ou Mozart para um país surdo que limpou com benzina o nome de Vianna da Mota de um avião da TAP, para lá colocar o de um futebolista -- isso, ela grava onde quiser. Esse país, em versão ligeira, mas com todas as letras, é uma merda.

[Actualização: Os ricos, em Nova Iorque, contribuem mais do que generosamente para que o Central Park seja limpo, ordenado, vigiado e protegido. Nos EUA, aliás, as universidades recebem dinheiro dos ricos, que financiam as suas bibliotecas e oferecem bolsas. Em Portugal, já vão longe os tempos em que os ricos -- como no Minho, por exemplo, Cupertino de Miranda -- erguiam bibliotecas, ofereciam livros, contribuíam para centros médicos e de velhice, e, sim, construíam fontanários, que eram um bem necessário e útil nas aldeias. Quando eu era estudante de liceu, recebi um prémio «para os bons alunos» instituído por um dos ricos da minha cidade -- foi com esse dinheiro que comprei alguns dos livros de que, ainda hoje, mais gosto. Na mesma altura, colegas meus (de liceu) recebiam bolsas instituídas por ricos locais -- torna-viagem brasileiros do tempo de Camilo (que é muito bom ridicularizar, não é?), primeiros colonos de África e «industriais de província» e alguns comendadores da indústria regional. Actualmente, o mundo dos ricos é ocupado por aventesmas que mostram a sua casa nas revistas, ao lado dos políticos e das estrelas de televisão que vão à ilha da Caras, e que têm uma sensibilidade de rinoceronte. Não conhecem Belgais como não conhecem música.]

[Actualização, 2: Há uns anos, numa biblioteca pública, mostrei-me interessado numas colecções de livros sobre Camilo e sobre o Brasil. Os bibliotecários informaram-me que tinha sido o sr. fulano, um desses «comendadores da indústria regional», a oferecer os livros. E que tinha contribuído com mais dinheiro para comprar os móveis-estante para os albergar. Folheei os livros, com curiosidade: estavam anotados. O sr. fulano morreu há uns tempos, era um simpático velho reaccionário que tinha algum dinheiro, uma bronquite crónica e uma quinta cheia de livros -- e um piano. Não sabia tocar e os netos e sobrinhos achavam aquilo uma maçada. Mas ele gostava de ter ali o piano. Era uma imagem de beleza pura e volátil que ele nunca entendera verdadeiramente. Abençoado.]