abril 18, 2004

CUENCA. O Jorge Marmelo leu o romance de João Paulo Cuenca (Planeta/Brasil), Corpo Presente, e deixa uma nota final muito lúcida; para quem viveu estes últimos dias do Rio, não deixa de ser verdadeira. Não sei se desilude, mas é fria como um espelho: «Ao contrário do que Marx supôs e contrariando o que José Eduardo Agualusa imaginou no seu O Ano em que Zumbi Tomou o Rio, o asfalto e favela estão em guerra, mas não há neste embate qualquer sonho de redenção dos oprimidos. O homem da favela está em armas, dispara alucinado para o ar, mas não procura qualquer libertação – quer apenas vender mais droga, enriquecer mais e mais e afastar quem atrapalha. A maioria, os outros, os que haviam de querer tomar o destino nas mãos, vão fintando as balas para ir trabalhar, às vezes sorrindo, às vezes felizes apenas por ainda estarem vivos e poderem continuar a servir quem reina no asfalto.» Não faço esta citação ao acaso. Zuenir Ventura, que escreveu Cidade Partida, uma das mais brilhantes reportagens sobre o mundo da favela e o mundo do crime (não por junto), ou, se quisermos, sobre a violência no Rio, falava disso mesmo. Já é tarde para recomendar dois dos outros livros de que eu e o Jorge gostamos, de Patrícia Melo, Inferno e O Matador, onde essa visão é quase transparente. Quando o Jorge fala da «Copacabana que não vem nos postais» refere-se a esse universo desfeito, perigoso, pobre, desumano -- mas também ao mundo que só chega a Copacabana pelas sombras dos morros, atrás do cheiro da pólvora ou pelos ônibus da madrugada, transportando as empregadas domésticas, o pessoal das limpezas, as babás que conhecem as coberturas de Ipanema ou da Gávea. E, mesmo aí, há gradações: as de Cuenca, as de Paulo Lins, as de Patrícia Melo, e as de Garcia-Roza. O mundo do Comando Capital, o das prisões, o das balas contra passeantes, o dos ataques ao palácio do governo, o dos assassínios nas favelas (entre bandos), não é romântico fora dos livros nem fora dos filmes. Tem uma crueza que Zuenir dizia ser inexplicável à luz da ideia de «luta de classes». Tem servido para muito sacerdócio, mas a evangelização leva a melhor.