abril 25, 2004

LIBERDADE, 2. No dia 25 de Abril de 1974 ajudei a derrubar o portão que separava os recintos dos rapazes e das raparigas no meu liceu. Durante o resto do tempo que andei no liceu (em Chaves) fiz o costume: assisti à revolução, li ao correr do tempo, participei em RGA’s onde se pedia o saneamento de professores e se aprovavam moções de apoio e de protesto, estudei a geografia da China e da URSS, comprei imprensa radical (do Voz do Povo ao A Rua), dirigi um jornal, fui membro de uma associação de estudantes, discuti Deus e a Pátria, fiz o Inter-rail, tive dúvidas. Também me comovi bastante ao longo desses anos e aderi a um partido no dia seguinte a ele ter perdido as eleições. Quase todos os meus professores da altura eram de esquerda mas tive três ou quatro de direita, para contrabalançar – um deles, o Dr. Antero Lopes, de História, condenou-me a ler os clássicos em vez de coleccionar vulgatas, e ainda hoje me sinto devedor desse entusiasmo. Ouvi do meu avô, operário e hortelão (daria um magnífico arquitecto paisagista), histórias da oposição ao regime – ele fora um leitor clandestino do Avante! (cujas edições eram guardadas no interior de uma revista da Diocese da Guarda) e eleitor de Humberto Delgado. Os meus pais deixaram-me à solta em livrarias e foram um modelo de tolerância para lá do aceitável. Tive também um tio-avô que era um clérigo superiormente culto e que, para moderar a arrogância da minha juventude, me ofereceu vários livros em latim e grego; emudeci e disse que não sabia latim nem grego suficientes para me divertir com clássicos no original, ao que ele respondeu acrescentando um livro em hebraico. Foi remédio santo. Nunca mais protestei.
Sabendo o que sabemos hoje, seria estúpido passar sobre o 25 de Abril sem mencionar as nossas histórias pessoais; cada uma delas deve quase tudo a essas transformações possíveis depois de 1974. A História interroga-as permanentemente, mas trinta anos depois devemos relacioná-las e, até, relativizá-las. Por isso, eu não teria comprado a guerra entre a «evolução» e a «revolução». Evidentemente que, sem a evolução que ocorreu na prodigiosa década seguinte, faria menos sentido comemorar a revolução, porque o 25 de Abril, assinalado como uma data (e reduzido à sua natureza de revolução, sem mais), se aproxima das romagens do 5 de Outubro, com as visitas às estátuas e as alvoradas de foguetes nos feriados municipais. A esquerda construiu, sobre estas designações, um edifício ideológico, naturalmente. Trinta anos depois, o tempo passou sobre ele e diluiu as suas cores sem, no entanto, destruir o conjunto ou, sequer, designar herdeiros incólumes de entre os seus artífices. A evocação desses artífices não significa a sua impunidade ou a sua absolvição; seria como se o papel de Otelo em Abril de 74 pudesse servir para o absolver de tudo o resto, ou para o poupar ao juízo da História.
Defender a memória (e lutar contra o esquecimento) não significa esgotar, até à exaustão, o sentido dessa memória, nem confere aos libertadores um papel de superioridade moral ou um lugar na eternidade do presente. Muitos deles usaram esse prestígio para fins políticos particulares que já não se contam entre o que a gratidão permite. Essa herança comum, vinda do 25 de Abril, significa hoje eleições livres e participação dos cidadãos, liberdade, distribuição de riqueza, justiça, igualdade no acesso à educação e ao conhecimento. Poderíamos acrescentar outras coisas, sim. Mas seria bom que também mencionássemos a necessidade de, hoje, combatermos a mediocridade, a aldrabice populista, o autismo dos políticos tradicionais do regime, a arrogância absurda da «opinião maioritária» que abunda nas televisões e na imprensa. [Jornal de Notícias]