O MEDO DO BRILHO. [ACTUALIZAÇÃO: No meio de várias distracções não mencionei a homenagem a Shakespeare no Blogue dos Marretas durante o dia 23, sexta-feira passada: «O, let my books be then the eloquence/ And dumb presagers of my speaking breast», Sonnet XXIII.]
Eduardo Prado Coelho escreveu no Público sobre o novo espectáculo de Ricardo Pais, uma montagem moderna de Hamlet , e pareceu-lhe muito bom. A questão não está na encenação, que deve ser boa -- mas no brilho de Shakespeare. Ao percorrer as livrarias em busca de uma versão simples de Gil Vicente, reparo que, além de exemplares em vias de desaparecimento da edição da Sá da Costa, existem apenas edições «preparadas para os estudantes», ilustradinhas e explicadinhas. Mas nenhum texto integral em edição popular. O mesmo acontece com Cesário; quando andava no liceu, havia pelo menos três edições de Cesário Verde (a preços diferentes e com anotações diferentes); agora, razoável, há uma, disponível. Evidentemente que o problema não se resolve apenas com edições dos clássicos pagas pelo Estado, ou feitas pelo Estado. Se a escola não faz circular os clássicos, o mercado não vê necessidade de publicá-los; daí, para quê publicar uma edição razoável de Cesário ou dos principais textos de Gil Vicente? É uma lógica circular mas muito clara.
A questão que o Hamlet de Ricardo Pais coloca (como o Shakespeare de Kurosawa, em Ran [Rei Lear] ou Throne of Blood [Macbeth] ou o Shakespeare de seja quem for), não é a da sua existência, mas a da necessidade da leitura de Hamlet e do seu brilho. Passar para o brilho contemporâneo de Shakespeare sem reparar, sequer, nesse brilho intenso do próprio Hamlet de Shakespeare, enquanto clássico, na sua beleza profunda (sim, quase explosiva quando se lê a primeira vez), deixa para trás a vida da própria peça. A contemporaneidade de Hamlet explica tudo o que quisermos a propósito do nosso mundo (e com o sentido que lhe quisermos dar), mas não explica essa beleza terrível (o verso de Yeats) da composição de Shakespeare. O mundo não pode recomeçar, já se sabe; mas podia ter menos medo dos clássicos, ou seja, da sua revelação, do seu brilho. Dizer isto de Shakespeare é dizer quase a mesma coisa acerca das edições inexistentes de Gil Vicente ou de Cesário: os livrinhos que andam aí, pedagógicos e didácticos, podem explicar tudo o que o nosso tempo aproveita deles, mas não explica como surge essa revelação espantosa: aquele livro, justamente.
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