abril 05, 2004

VOTO EM BRANCO. Vital Moreira não concorda com a hipótese da abstenção em vez do voto em branco defendido por Saramago – do seu ponto de vista, certamente que tem razão. Como escrevi no artigo do JN, a abstenção é uma recusa muito mais radical e, aí sim, totalmente «fora do sistema». Eu não vejo o voto em branco como um cartão amarelo à democracia – mas sim como voto num outro partido.
O livro de José Saramago mostra que a sua desconfiança nem sequer se limita à democracia como sistema político (sinceramente, a ideia de uma democracia fora da prática de eleições para um parlamento parece-me impraticável), mas à própria natureza humana, aproximando-se de um pessimismo antropológico a posteriori, ou seja, enunciado depois de ver os «descaminhos» que as coisas tomaram – fica do lado do ressentimento, da crispação contra «os políticos» que discursam em contraponto, «os eleitores» que elegeram os parlamentos, «os jornalistas» que permitiram que as coisas chegassem a este ponto, «os intelectuais» que não se opuseram «à hecatombe anunciada», «os rapazes» que ouvem rock, «as religiões» que defendem um deus absurdo. A encruzilhada de Saramago é evidente: existe depois das ruínas da utopia e do comunismo (que «não era isto», mas que continua a ser defensável), e assenta numa profunda bondade impossível. O mundo anda às avessas. Mas os personagens de Levantado do Chão já não são os personagens de Levantado do Chão: o capitalismo corrompeu-os, no Alentejo como no Leste europeu, e isso é tristeza bastante. Esta é a ideia de Saramago, e não se pode duvidar da sua generosidade. Mas podemos duvidar das suas ideias, o que é uma coisa inteiramente diferente. Eu não duvido da sua generosidade – mas tenho demasiadas dúvidas sobre as suas ideias. E, no caso presente, muitas dúvidas sobre o seu romance. Mas isso é outra coisa completamente diferente. É literatura. E, em matéria de literatura, este livro é um caso encerrado. Tudo o que nele é literatura está esmagado pelo peso superlativo da moral e da pregação.