IRAQUE. [Actualizado às 15:56, de 09.05.2004] É evidente que a «descoberta» da tortura de prisioneiros iraquianos é um dado estarrecedor e não pode ser considerada «mais um erro» americano no Iraque. Erro civilizacional seria justificar os factos (as fotos, os relatos) e estabelecer comparações vergonhosas com as chacinas de Saddam ou as atrocidades do regime. Isso é o que o relativismo faz com abundância em nome do «respeito pelas culturas» e pelo «contexto histórico» e nunca deixou de ser grotesco. Há valores que separam as civilizações, não para que sejam um argumento em defesa da «superioridade moral» do Ocidente, mas para que valha a pena viver nelas -- e o tratamento a dar aos prisioneiros de guerra é um dos valores (trabalhei com um alemão que tinha sido prisioneiro de guerra nos EUA em 1945, sei do que falo). Por isso, não vale a pena estar com rodeios nem mencionar a adversativa («mas...»). O que essas imagens relatam é abjecto. E é, preto no branco, um golpe sério na credibilidade americana nesta matéria. Porque é evidente que essas imagens serão apresentadas como uma «das marcas» americanas no Iraque.
Sobre a «superioridade moral» poder-se-ia falar bastante, mas é um conceito tão intolerável e abjecto como qualquer outro: esconde sempre uma desgraça arrumada em algum lugar e dá lugar às comparações a que ninguém resiste e que abrem logo uma brecha de «inferioridade moral» igualmente grotesca. É evidente que há aqui um problema de memória mas, nessa como em outras discussões, o marketing político da guerra não conhece favores especiais. Portanto, a questão é que não há desculpas. Nem uma das valas comuns deixada por Saddam pode justificar a baixaria.
De qualquer maneira, há uma razão para protestar -- não para corarmos de indignação, porque já se conhece bastante deste mundo -- acerca deste comportamento que está registado em fotografias: porque nós não o aceitamos. Se há uma questão moral envolvida, esse é o único imperativo moral. Não se protesta para se ter a consciência limpa, ou para entrar nessa contabilidade miserável dos crimes que se denunciam para equilibrar ou desequilibrar os pratos de uma balança onde só entra o número das indignidades. Muitos dos que agora protestam, em nome da paz ou da decência (e bastava a decência), passaram quase meio século, se a idade lhes desse para isso, a esconder perseguições, execuções sumárias, prisões, massacres e cadáveres debaixo do tapete (na URSS, em Cuba ou em qualquer das prisões construídas em nome do paraíso na terra). Não é por isso que o protesto tem menos valor -- o deles é que não tem significado. Nem por terem aprendido a lição.
Essa é a vantagem da democracia. Para isso nos serve, para não pedermos a dignidade: «Armies are made of individuals. Nations are made up of individuals. Great national crimes begin with the acts of misguided individuals; and no matter how many people are held directly accountable for these crimes, we are, collectively, responsible for what these individuals have done. We live in a democracy. Every errant smart bomb, every dead civilian, every sodomized prisoner, is ours.» {Philip Kennicott, «A Wretched New Picture Of America, Photos From Iraq Prison Show We Are Our Own Worst Enemy», Washington Post, via Causa Nossa}
{P.S. 1 - Quando há atentados em Israel, tanto o pessoal da Magen David Adom como o de outras organizações encarregues de actuar nessas circunstâncias impedem que se fotografem os mortos. É uma lei a que o Nuno Guerreiro já se referiu e ele pode dar explicações mais profundas sobre isso noutra circunstância. Muitas vezes se discutiu em Israel, por isso, sobre o «marketing da morte». Eu acho admirável que essa recusa (em exibir os mortos) se sobreponha aos apelos, muitas vezes compreensíveis, para «mostrar a dor» como marketing político. Sei que não é útil, que não comove as páginas dos jornais. Mas há coisas mais importantes do que as páginas dos jornais e os seus idiotas chapados. Por isso, o combate em redor de «a minha dor é maior do que a tua» é só uma coisa para ignorar. A dor pertence a todo o lado.}
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