maio 04, 2004

A REBELIÃO DAS MASSAS, 2. Eu sei que isto é aparentemente «pouco democrático», mas não resisto a citar Ortega outra vez, como uma marca «do que é característico da nossa época»: «Não que o vulgar julgue que é excelente e não vulgar, mas que o vulgar proclame e imponha o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como direito. O império que a vulgaridade intelectual exerce hoje sobre a vida pública é, porventura, o factor mais novo da presente situação, menos assinalável a nada do passado. Pelo menos na história europeia até à data, nunca o vulgo julgara ter "ideias" sobre as coisas. Tinha crenças, tradições, experiências, provérbios, hábitos mentais, mas não se imaginava na posse de opiniões teóricas sobre o que as coisas são ou deviam ser -- por exemplo, sobre política ou sobre literatura. [...] Hoje, pelo contrário, o homem médio tem as "ideias" mais taxativas sobre quanto acontece e tem de acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Para quê ouvir, se já tem dentro tudo o que faz falta? Já não é a altura de ouvir, mas, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública onde não intervenha, cego e surdo como é, impondo as suas "opiniões". Mas não é isto uma vantagem? Não representa um progresso enorme que as massas tenham "ideias", isto é, que sejam cultas? De maneira nenhuma. As "ideias" deste homem médio não são autenticamente ideais, nem a sua posse é cultura. A ideia é um xeque à verdade. Quem quiser ter ideias tem de dispor-se antes a querer a verdade e aceitar as regras do jogo que ela impuser. Não vale falar de ideias ou opiniões onde não se admite uma instância que as regula, uma série de normas a que cabe apelar na discussão. Estas normas são os princípios da cultura. Não me importa quais.» (Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 1930)