junho 11, 2004

EURO 2004, QUASE PARA TERMINAR AS JUSTIFICAÇÕES. Variações sobre o tema, no Frankfurter Allgemeine Zeitung:

«Se o futebol ainda conserva um resto de magia, seria bom que ela se manifestasse durante o Euro’2004. Só um pouco. Andamos muito tristes, na Europa. Andamos muito cansados da Europa, na Europa. Se os leitores da “Frankfurter Allgemeine Zeitung” fizerem um pequeno esforço de releitura das páginas do jornal, hão-de reparar que a Europa, ultimamente, não tem produzido grandes novidades, esperanças, entusiasmos, paixões ou alegrias. Basta, para isso, que leiam o que dizem os “génios” da Comissão Europeia, de Romano Prodi a qualquer funcionário de Bruxelas ou de Estrasburgo – é assustador, não é? Sim, eu sei que os tempos não estão fáceis, há o terrorismo, a guerra no Iraque, a discussão sobre o défice orçamental, os subsídios comunitários à agricultura, o alargamento da União, o Big Brother na televisão (em quase todas as televisões), o fundamentalismo islâmico, o preço da cerveja, a crise na literatura. Uma pessoa normal não tem grandes razões para estar satisfeita.
O mundo do futebol também tem as suas crises: uma burocracia hereditária tomou conta dele, na Europa e fora dela, encheu-o de leis, compromissos, prefácios a volumes legislativos, comissões de juristas que tratam do off-side e dos lançamentos laterais, penalizações diversas, acordos com televisões e agências de publicidade, enfim, tudo o que é necessário para que o futebol funcione, enriqueça uma indústria minuciosa e que, às vezes, funciona como um Estado dentro de um Estado (ou de vários Estados, como acontece na União Europeia). Seja como for, não poderemos mudar isso, e não creio que seja o mais urgente.
PORTUGAL É UM PAÍS PEQUENO E APAIXONADO. Poderia, em vez de se dedicar à organização do Euro’2004, ter melhorado as suas contas públicas, promovido a sua literatura e as suas artes (infelizmente, a língua portuguesa é tão minoritária que não são muito conhecidos além-fronteiras o génio de Camões, o humor de Eça de Queiroz ou de Camilo Castelo Branco, a pintura de Paula Rêgo ou Graça Morais, a música de Frei Manuel Cardoso ou Carlos Paredes), modernizado a administração e os serviços públicos, investido na educação elementar. Mas acontece que Portugal gosta bastante de futebol, tanto como de receber visitas. Eu não concordei com isto, de organizarmos o Euro’2004: achei que devíamos ser europeus sérios e circunspectos, bons aprendizes em matéria económica, empenhados no estudo, no trabalho e nas nossas contas bancárias – “como os alemães”, conforme se diz em Portugal.
De qualquer modo, a decisão estava tomada. É por isso que eu peço um pouco da magia do futebol neste começo de Verão antecipado: golos, sim. Mas também a nossa memória de uma jogada luminosa e arrepiante. Europeus, precisamos disso neste momento. Precisamos da alegria do jogo, da sua inocência. O brasileiro Garrincha, que foi um dos melhores jogadores do mundo – teve, em relação a Pelé, o defeito de descuidar a sua carreira e de gostar muito de jogar –, era conhecido por essa inocência: diz-se que, nesses anos cinquenta em que jogou com a camisola do Botafogo (um clube do Rio de Janeiro), driblava uma defesa inteira: um, dois, três, quatro, às vezes cinco, deixava os adversários sentados na relva depois das suas fintas e, não contente em ficar sozinho diante da baliza, pronto para marcar o golo, esperava que a defesa se recompusesse para que pudesse driblá-la outra vez. Já não há futebol deste, evidentemente (os adeptos do Botafogo desesperavam, porque preferiam golos, o que é bastante compreensível); mas ele traduz a alegria de jogar – que está a fazer-nos muita falta. E, a esta distância, apela à nossa disponibilidade para “ver futebol”.
Já não voltaremos a esse tempo. Penso nisso quando vejo as imagens tristes de Maradona, internado numa clínica argentina. Mas não sou um saudosista, um reaccionário. Num mundo cheio de ressentidos e desesperados, de politicamente correctos, o futebol também abre a porta para o teatro da justiça absolutamente humana (um golo é um golo) e para a contingência das vitórias absolutas (que já não existem, como se sabe). Neste caso, na Europa de 2004, o futebol vai interromper esse ciclo de ressentimento e de primeiras páginas (dos nossos jornais) dedicadas a personagens cinzentos e banais.
ORA, O FUTEBOL É ISTO QUE ESTÁ À VISTA DENTRO DOS ESTÁDIOS: UM JOGO. Às vezes é brutal, sim. E deselegante (a quantidade de sonetos sofríveis e mesmo de má qualidade produzidos ao longo da história da poesia também é inquietante, para não falar dos romances europeus), tanto quanto podem ser o espírito humano ou a massa humana reunida em multidões à solta. Joga-se com brio, sim, e sem piedade – se bem que ela apareça de vez em quando, mas não faz parte do seu dicionário essencial.
Gostar de futebol, por isso mesmo, é um exercício sobre o qual as explicações flutuam ao sabor do momento. Prefiro nunca falar delas, mas podem mencionar-se: a arte, o domínio da bola, o exercício de conjunto, a elegância do passe, a apoteose do golo, a festa da multidão, a cor e a luz dos estádios. São ninharias. Gosta-se de futebol. Ou não se gosta. Podemos ter muitas explicações para a ideia de “gostarmos de futebol”, tal como os críticos literários gostam de revolver a obra de Shakespeare ou de Goethe à procura de mais um sinal do admirável génio desses dois europeus. Mas, um leitor de Goethe e de Shakespeare, tal como um adepto da sua equipa de futebol, sabe intimamente que esse génio está lá: o que ele espera, no momento em que está mais perto dos seus livros ou dos golos da sua equipa, é apenas pouco de magia, de respiração, de alegria.
O mundo está perigoso; um pouco de futebol, em Portugal, pode ajudar-nos a sermos mais optimistas. Como toda a gente que precisa de ilusões.»

2 Comments:

At 4:15 da manhã, Anonymous Anónimo said...

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At 10:48 da manhã, Anonymous Anónimo said...

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