julho 23, 2004

BERNARDO, SÉRGIO. O Jabuti deste ano foi (na categoria de ficção) para dois autores e dois livros a reter: Bernardo Carvalho, com Mongólia, e para Sérgio Sant'anna, com O Voo da Madrugada (ambos da Companhia das Letras no Brasil, Livros Cotovia em Portugal). Os dois livros já tinham recebido o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte de São Paulo.


«Foi chamado de Ocidental por nômades que não conseguiam dizer o seu nome quando viajou pelos confins da Mongólia. Fazia tempo que eu não ouvia falar dele, até ler a reportagem no jornal. Voltou da China há cinco anos e largou a carreira diplomática. Sua volta intempestiva coincidiu com a eclosão da crise da pneumonia atípica na Ásia, o que pode ter servido de explicação para alguns, mas não para mim. O jornal diz que ele morreu num tiroteio entre a polícia e uma quadrilha de seqüestradores, quando ia pagar o resgate do filho menor no morro do Pavãozinho. Pela idade do garoto, só pode ser o que nasceu em Xangai, logo antes de voltarem para o Brasil, quando ele decidiu mudar de vida sem dar satisfações a ninguém. Ao que parece, também saiu de casa em sigilo, terça-feira de manhã, para pagar o resgate. Não avisou ninguém, muito menos a polícia. Seguiu à risca as ordens dos seqüestradores. Os policiais o seguiram assim mesmo, sem que ele percebesse. O menino foi salvo, mas ele morreu no local. Tinha quarenta e dois anos. Ninguém vai ser responsabilizado, é claro. A polícia alega que ele foi imprudente. Liguei para um diplomata do Itamaraty que vive em Varsóvia e que o conhecia desde pequeno. Eram amigos de infância. Estava muito abalado. Decidira pegar o primeiro avião para o Brasil, que partia de Frankfurt naquela mesma noite.»
Bernardo Carvalho, Mongólia.


«Se alguma coisa digna de registro aconteceu em minha vida dura e insípida foi estar entre os passageiros daquele vôo extra, de Boa Vista para São Paulo. Antes de tudo, devo explicar as circunstâncias, talvez fortuitas - mas que depois me pareceram pertencer a uma cadeia de fatos necessariamente interligados -, que me levaram a estar entre os seus poucos passageiros, pois tinha bilhete marcado para as nove horas da manhã seguinte.Eu estava no quarto de hotel e, apesar de haver tomado dois comprimidos das amostras que carregava comigo, não conseguia dormir, por causa do som infernal que vinha da boate em frente, atravessando a janela e a cortina fechadas, misturando-se às vibrações do velho e empoeirado condicionador de ar. As músicas, em fitas que se sucediam sem interrupção, eram dessas gravadas especialmente para se dançar em discotecas vagabundas, as mesmas tocadas nas piores rádios em toda parte, e mal se distinguiam umas das outras.»
Sérgio Sant'anna, O Voo da Madrugada.