julho 30, 2004

ORTOGRAFIA, A ALEGRIA DE LER. O Pedro Ornelas regressa ao Aviz (onde há sempre um lugar) para os nossos diálogos sobre a ortografia:

Caro Francisco: Nada me leva a crer que se escrevesse melhor português em 1993, 1973, 1953 ou 1753... nem que se escrevesse pior. Mas de uma coisa estou certo: cada vez há mais gente a saber escrever, bem ou mal. E isso poderá, eventualmente, explicar que hoje se escreva pior. Mas sou céptico a esse respeito. Já os romanos se lamentavam do avacalhamento do latim - que deu, entre outras coisas, nesta coisa que nós falamos e escrevemos.
Outra coisa de que tenho a certeza é que a ortografia portuguesa está cheia de incongruências e omissões. É mais complicada, por exemplo, que a ortografia do espanhol ou do italiano. Há intermináveis e inconclusivas discussões sobre o uso do hífen ou das maiúsculas, por exemplo. Seria bastante útil, quanto a mim, que a reforma de 1990 entrasse em vigor. Disseram-me ontem que se abriu essa possibilidade por a CPLP ter acordado que não seria obrigatória a ratificação por todos os estados-membros. Espero que seja verdade.
Quanto à importância do ensino do português, confesso que não sei o que dizer. Não percebo nada de didáctica da língua. No entanto, parece-me que só aprende a escrever bem quem gosta de ler. Logo, fomentar o gosto pela leitura será a melhor maneira de fazer com que as pessoas escrevam bem. E não me parece que isso tenha de passar necessariamente pela leitura dos clássicos. Eu sempre fui um aluno medíocre a Português, a disciplina sempre me pareceu uma seca, e no entanto tinha uma facilidade acima da média em exprimir-me por escrito. Porquê? Suponho que foi por ter tido a sorte de ter uns pais cultos, que liam umas coisas, e eu fui lendo o que havia lá por casa – os livros dos Cinco, o Moby Dick, as Selecções do Reader's Digest, o Último Moicano, eu sei lá. Mas do Camilo só li um livrinho da colecção RTP (Maria Moisés), do Eça só me lembro do Crime do Padre Amaro por causa das sugestões eróticas, depois li o Álvaro de Campos no final da adolescência, e pouco mais. Ah, também me lembro dos livrinhos do Rómulo de Carvalho, de que devorei avidamente a colecção toda, mas isso não conta. Continuei a ter más notas a Português porque não tinha pachorra para ler o que me mandavam - ninguém avaliava se eu escrevia mais ou menos bem, mas sim se conhecia a intriga dos Maias ou o que fosse obrigatório ler. E, no entanto, sempre me disseram que eu escrevia bem, desde a escola primária à faculdade e aos jornais. O que será mais importante, conhecer bem a literatura portuguesa ou saber ler e escrever bem? Era bom discutir-se isto sem histerias e preconceitos à Vasco Graça Moura contra os pobres linguistas.
Sobre o Dicionário da Academia: acho que pouca gente percebeu a importância do projecto e o Malaca Casteleiro talvez não se tenha sabido explicar. Foi, simplesmente, a primeira tentativa de fazer um dicionário em que as palavras que lá figuram não estão por acaso, porque alguém se lembrou que existiam, mas sim porque são de facto utilizadas – um conjunto de palavras representativo do português tal como é falado hoje em dia. Tanto quanto sei, o primeiro dicionário no mundo feito com este critério foi o Oxford English Dictionary, elaborado entre 1884 e 1928 com a contribuição de milhares de voluntários. Hoje em dia, as grandes editoras britânicas de dicionários, como a Longman ou a Collins, trabalham a partir de corpora, ou seja, grandes quantidades de textos, recolhidos nos mais diversos tipos de publicações e através de entrevistas, de onde é extraída uma amostra representativa das palavras mais utilizadas. Uma especialista em lexicologia da Faculdade de Letras falou-me de alguns problemas com o Dicionário da Academia, nomeadamente um certo secretismo em torno da sua elaboração e o facto de não terem sido publicados artigos teóricos à medida que o projecto ia avançando, como seria normal. Infelizmente, o que passou para a opinião pública não foi a enorme importância do projecto e a melhor ou pior forma como foi elaborado, mas as reacções à inclusão de palavras «impróprias», à exclusão de palavras caídas em desuso e à tentativa de normalização ortográfica de estrangeirismos.
Quanto aos revisores que o Francisco cita, não tenho o prazer de conhecer nenhum deles. Mas pelas minhas mãos já passaram textos de muita gente, incluindo um tal de Francisco José Viegas, o João Bénard da Costa, o Vasco Pulido Valente, só para citar alguns dos melhores. Quanto aos piores, abstenho-me. Como se nota, fui revisor no O Independente. Agora, há um caso que me dá que pensar: o Leonardo Ferraz de Carvalho foi um dos cronistas que maior prazer me deu. Escrevia maravilhosamente, na minha modesta opinião. Mas os textos dele vinham sempre com erros, lapsos, distracções, incongruências. E, no entanto, quem me dera algum dia conseguir escrever daquela maneira. Trocava já a minha competência ortográfica por aquele maravilhoso dom de escrita.