agosto 22, 2004

O ANTI-SEMITISMO SECUNDÁRIO. Um cemitério judaico vandalizado não vale nada. Há tantas coisas vandalizadas, estradas, casas, memórias, bibliotecas cheias de proibições, passeios estropiados, jardins, aldeias de África, borboletas que não completam um dia de vida. Um cemitério judaico não vale nada. Uma pedra não vale nada, é certo. As coisas têm sempre uma justificação, como se sabe -- uma coisa por causa de outra, há minorias mais rendíveis do que outras, racismos com outra origem que são sempre mais funestos. A vida não vale grande coisa. A memória é um desperdício.
Há muito tempo que não falava do assunto. Há muito tempo que tinha prometido a mim mesmo assistir ao espectáculo e à desonestidade. O riso e o silêncio andam juntos. O estímulo da barbárie ajuda a desculpar outras barbáries, a justificar os vandalismos, a estabelecer uma espécie de doutrina comparativa sobre o sofrimento. Batem em judeus? Que importância tem comparado com o sofrimento que anda em toda a parte? E quando são vandalizados cemitérios cristãos na Indonésia? E quando os muçulmanos são dizimados na Índia, em Gujarat? A barbárie diante do silêncio. Chegam mensagens curiosas: a televisão israelita acaba de transmitir um documentário sobre o sofrimento palestiniano. É preciso chegar a esta minha hipocrisia de invocar isto para poder falar daquilo? Onde está alguém a vigiar a linguagem, as equivalências morais, a superioridade do sofrimento, o que é relativo no Kosovo e no Sudão, na Índia e no Peru? Nada é relativo. Quando falo disto falo de outra linguagem, não quero ganhar um voto que seja. Nas tintas. Falo do que não tem equivalência moral. Sim, têm razão, não é anti-semitismo primário; secundário, convenhamos. De segundo nível.
Lamento pobretanas, este. Lamento indigente, sofrível, medíocre. Só um lamento ao lado do riso e do silêncio; a ironia gasta-se muitas vezes. Façam como quiserem: um cemitério judeu não vale nada. Nada. Aliás, quando invoco a imagem do cemitério judaico invoco todos os cemitérios em que isto se transformou. Não quero ganhar um voto, um milímetro do mapa. Mas compreendo aqueles que não aceitam ser esmagados de novo, uma outra vez, uma pequena vez que seja. Silêncio e riso.