agosto 09, 2004


ORTOGRAFIA & SAM SHEPARD. O que eu queria dizer com os textos sobre ortografia e o Português está escrito de outra maneira por Sam Shepard em «O Pedaço do Muro de Berlim», uma das histórias de O Grande Sonho do Paraíso: um miúdo do secundário (sétimo nível, nos EUA) pede ao pai que lhe conte coisas sobre os anos oitenta para a disciplina de estudos sociais. A princípio, o pai não se lembra («Diz que a coisa mais importante dos anos oitenta era ter sido quando ele conheceu a minha mãe e quando eu e a minha irmã nascemos. Quando lhe digo que não é permitido falar de assuntos pessoais, ele diz: e para além disso o que é que há?»), «que nem se consegue lembrar de ter vivido durante a década de oitenta». Mas depois a irmã fala do Muro de Berlim. Ele, o estudante do sétimo nivel, pergunta «como é que ela sabe essas coisas» e «ela diz que é porque estava lá». E apresenta «um pedaço de cimento pintado mais ou menos do tamanho de um cheeseburger». «Isso é um pedaço do Muro do Berlim», diz ela. O pai fica excitadíssimo com a recordação de Berlim e mete-a num saco plástico, transparente, ata-o com fita cola, etiqueta-o com «marcador preto Magic Marker, como se fosse uma espécie de rótulo de museu ou coisa do género». «É completamente doido», lembra o estudante. «Como é que se pode esperar que eu saiba a resposta? Eu ainda nem sequer tinha nascido quando aquilo aconteceu.» O pedaço de Muro de Berlim «é apenas um pedaço de cimento», diz ele. «Não o percas», pede-lhe a irmã. «Como é que posso perder? Tem um rótulo», responde ao sair de casa.
E é isso que a discussão sobre o Português evoca neste momento, uma ligação à história da nossa vida. Não apenas um rótulo, uma regra, uma norma, uma perseguição. Mais uma delicadeza para com o passado e as letras que foram escritas antes de cada um de nós as escrevermos, uma a uma.